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quinta-feira, 14 de março de 2013

O menino do pijama listrado- Capítulo 19 - O que aconteceu no dia seguinte

O dia seguinte – sexta-feira – foi mais um dia molhado. Quando Bruno acordou pela manhã, olhou pela janela e ficou desapontado ao ver a chuva caindo. Se não fosse pelo fato de que aquela seria a última chance de ele e Shmuel passarem algum tempo juntos – sem falar que a aventura prometia ser muito emocionante, especialmente porque envolvia fantasias e roupas, - ele teria desistido de sair e teria esperado por outra tarde na semana seguinte, quando não tivesse planejado nada de especial.
Entretanto, o tempo estava passando e não havia nada que ele pudesse fazer o respeito. E, afinal, era apenas de manhã, muita coisa poderia acontecer até a tarde, no horário em que os meninos costumavam se encontrar. Certamente a chuva já teria parado àquela altura.
Ele ficou olhando pela janela durante as aulas matinais de herr Liszt, mas a chuva não deu sinais de enfraquecimento e até golpeava com maior força as janelas. Bruno observou a janela durante o almoço na cozinha, quando estava chorando definitivamente menos, e até viu um raio de sol saindo de trás de uma nuvem escura. Ele olhou a chuva durante as aulas de geografia e história ao longo da tarde, quando o vento atingiu sua força máxima e a chuva até ameaçou derrubar as janelas.
Felizmente a chuva parou quase na hora de herr Liszt ir embora, e então Bruno vestiu um par de botas e o pesado casaco de chuva, esperou até que ninguém estivesse olhando e saiu de casa.
As botas chafurdavam na lama e ele passou a apreciar a caminhada mais do que em qualquer outra ocasião anterior. A cada passo Bruno parecia enfrentar o perigo de tropeçar e cair, o que não chegou a acontecer, pois ele conseguiu manter o equilíbrio, até mesmo num trecho especialmente ruim onde, ao erguer a perna esquerda, a bota ficou presa na lama enquanto seu pé escorregou direto para fora do calçado.
Ele olhou para o céu e, embora ainda estivesse bastante escuro, pensou que já havia chovido o suficiente por um dia e que estaria a salvo durante a tarde. É claro que depois haveria o desafio de explicar por que estaria tão sujo ao voltar para casa mais tarde, mas Bruno pensou que poderia usar como argumento o fato de ser um menino típico, o que a mãe sempre dizia que ele era, e assim provavelmente não se meteria em muita encrenca. (A mãe estivera especialmente feliz durante os dias anteriores, à medida que cada um dos pertences da família era empacotado e mandado para Berlim.)
Shmuel estava esperando por Bruno quando este chegou, e pela primeira vez ele não estava sentado de pernas cruzadas no chão, olhando para a poeira sob seus pés; ao contrário, estava de pé, apoiado contra a cerca.
“Olá, Bruno”, disse ele quando viu o amigo se aproximando.
“Olá, Shmuel”, disse Bruno.
“Não sabia se nos veríamos novamente – com a chuva e tudo o mais, quero dizer”, disse Shmuel. “Achei que talvez você tivesse que ficar dentro de casa.”
“Foi arriscado no começo”, disse Bruno. “Com a chuva tão forte.”
Shmuel confirmou com a cabeça e estendeu as mãos para Bruno, que abriu a boca, encantado. Ele trazia um par de calças listradas, o paletó listrado e o boné listrado de pano que compunham um pijama exatamente igual ao que estava vestindo. Não estava muito limpo, mas servia como disfarce, e Bruno sabia que os melhores exploradores sempre usam as roupas certas.
“Ainda quer me ajudar a encontrar meu pai?”, perguntou Shmuel, ao que Bruno acenou rapidamente com a cabeça.
“É claro”, ele disse, embora na sua cabeça procurar o pai de Shmuel não fosse tão importante quanto a possibilidade de explorar o mundo do outro lado da cerca. “Não iria desapontá-lo.”
Shmuel ergueu do chão a parte de baixo da cerca e passou por baixo dela as roupas para Bruno, tomando muito cuidado para não deixá-las tocar o chão enlameado.
“Obrigado”, disse Bruno, coçando a cabeça rala e se perguntando por que não lembrara de trazer uma sacola na qual deixar as próprias roupas. O chão naquele ponto era tão sujo que elas ficariam arruinadas se fossem deixadas ali. Não havia escolha, na verdade. Ele poderia deixá-las ali até mais tarde e aceitar o fato de que estariam completamente tomadas pela lama; ou podia desistir da coisa toda, e isso, como qualquer explorador sabia, estava absolutamente fora de questão.
“Bem, vire para lá”, disse Bruno, apontando para o amigo que estava ali sem jeito, “não quero que fique me observando.”
Shmuel deu meia-volta e Bruno tirou o casaco e depositou-o o mais delicadamente que pôde no chão. Depois tirou a camisa e tremeu no ar frio por um instante antes de vestir o paletó do pijama. Enquanto o passava pela cabeça, teve a infeliz idéia de respirar pelo nariz; o odor não era bom.
“Quando foi a última vez que foi lavado?”, perguntou ele, e Shmuel voltou-se novamente.
“Não sei se já foi lavado”, disse Shmuel.
“Vire para lá!”, gritou Bruno, e Shmuel obedeceu. Bruno olhou para a esquerda e para a direita oura vez; como não havia ninguém à vista, ele começou o difícil processo de tirar as calças enquanto descalçava uma bota, e depois a outra, passando as pernas alternadamente. Parecia muito estranho tirar as calças ao ar livre e ele não era capaz de imaginar o que pensaria uma pessoa que o visse naquele momento, mas finalmente, e após grande esforço, conseguiu completar a tarefa.
“Pronto”, disse ele. “Pode virar de novo.”
Shmuel voltou-se bem quando Bruno aplicava o toque final ao disfarce, colocando o boné de pano na cabeça. Shmuel piscou e balançou a cabeça. Estava realmente muito bom. Se não fosse pelo fato de que Bruno não era nem de longe tão magro quanto os meninos daquele lado da cerca, nem tão pálido, seria difícil distinguir entre eles. Era quase (pensou Shmuel) como se fossem mesmo exatamente iguais.
“Sabe o que isso tudo me lembra?”, perguntou Bruno, e Shmuel balançou a cabeça.
“O quê?”, perguntou ele.
“Isso me lembra da minha avó”, disse ele. “Lembra-se de quando eu lhe falei dela? Aquela que morreu?”
Shmuel acenou com a cabeça; ele se lembrava porque Bruno falara muito dela ao longo do ano e lhe contara o quanto gostava da avó e como gostaria de ter aproveitado melhor o tempo para poder escrever-lhe mais cartas antes que ela morresse.
“Lembra-me das peças que ela costumava encenar comigo e com Gretel”, disse Bruno, tirando os olhos de Shmuel, enquanto recordava aqueles dias distantes, ainda em Berlim, parte das muito poucas memórias que se recusavam a se desvanecer. “Lembra-me de como ela sempre tinha a roupa certa para mim. Usando a roupa certa, você se sente como a pessoa que está fingindo ser, ela sempre me dizia. Creio que é isso o que estou fazendo, não? Fingindo ser uma pessoa do outro lado da cerca.”
“Um judeu, você quer dizer”, disse Shmuel.
“Sim”, disse Bruno, equilibrando-se nos pés em sinal de desconforto. “Isso mesmo.”
Shmuel apontou para os pés de Bruno e para as botas pesadas que ele trouxera de casa. “Vai ter que deixá-las para trás também”, disse ele.
Bruno fez cara de desgosto. “Mas e a lama?”, disse ele. “Você não espera que eu vá descalço.”
“Se não for, será reconhecido”, disse Shmuel. “Não tem escolha.”
Bruno suspirou, mas sabia que o amigo tinha razão; então tirou as botas e as meias e as deixou ao lado da pilha de roupas no chão. De início pareceu horrível colocar os pés descalços dentro de tanta lama; eles afundavam até os tornozelos e, cada vez que ele erguia o pé, a coisa parecia ficar pior. Depois porém ele até que começou a gostar da sensação.
Shmuel abaixou-se e ergueu a base da cerca, que só cedia até certa altura, e Bruno foi obrigado a rolar por baixo dela, cobrindo de lama completamente o pijama listrado. Ele gargalhou quando olhou para si mesmo. Jamais estivera tão sujo em toda a vida, e a sensação era maravilhosa.
Shmuel também sorriu e os dois meninos ficaram juntos, sem jeito por um instante, desacostumados que estavam a ficar do mesmo lado da cerca.
Bruno sentiu um impulso de abraçar Shmuel, apenas para mostrar-lhe o quanto gostava dele e como fora bom conversar com ele durante o ano que passara ali.
Shmuel também sentiu um impulso de abraçar Bruno, apenas para agradecer-lhe pelas incontáveis gentilezas, e pela comida que trazia de presente, e pelo fato de que iria ajudá-lo a procurar pelo pai.
No entanto, nenhum deles abraçou o outro; em vez disso, começaram a caminhada desde a cerca até o campo, uma caminhada que Shmuel fizera quase todos os dias já há quase um ano, quando escapava dos olhares dos soldados e conseguia chegar até a única parte de Haja-Vista que parecia não estar sob vigilância constante, um lugar no qual ele tivera a sorte de encontrar um amigo como Bruno.
Não demorou para que alcançassem o campo. Bruno abriu os olhos, assombrado com as coisas que via. Na sua imaginação ele pensara que todas as cabanas estavam cheias de famílias felizes, algumas das quais se sentavam do lado de fora em suas cadeiras de balanço durante o anoitecer e contavam histórias sobre como as coisas eram melhores quando eram crianças e tinham respeito pelos mais velhos, ao contrário das crianças de hoje. Pensou que todos os meninos e meninas que moravam ali estariam em grupos diferentes, jogando tênis ou futebol, pulando corda e desenhando no chão quadrados para jogar amarelinha.
Imaginou que haveria uma loja no centro, e quem sabe um pequeno café como aqueles que ele vira em Berlim; perguntava-se se haveria uma banca de frutas e legumes.
Como ele pôde ver, todas as coisas que ele imaginou estarem lá – não estavam.
Não havia adultos sentados em cadeiras de balanço nas varandas.
E as crianças não estavam brincando em grupos.
E não só faltava uma banca de frutas e legumes, como tampouco havia algum café parecido com os de Berlim.
Em vez disso, o que havia eram multidões de pessoas sentadas juntas em grupos, olhando para o chão, com uma aparência terrivelmente triste; todos tinham uma coisa em comum: eram absurdamente magros, e os olhos eram fundos, e as cabeças, raspadas, o que Bruno imaginou indicar que lá também houvera uma epidemia de piolhos.
Num canto Bruno viu três soldados que pareciam encarregados de um grupo de cerca de vinte homens. Estavam gritando com eles, e alguns dos homens haviam caídos de joelhos e lá estavam com as cabeças entre as mãos.
Noutro canto ele viu mais alguns soldados montando guarda e rindo e olhando pelas miras das armas, apontando-as em várias direções, mas sem dispará-las.
Na verdade, para onde quer que ele olhasse, só via dois tipos de gente: se não eram os soldados felizes, sorridentes e gritalhões nos seus uniformes, então eram as pessoas infelizes e choronas de pijama listrado, a maioria das quais parecia estar olhando para o nada, como se estivessem de fato adormecidas.
“Acho que não gosto daqui”, disse Bruno depois de um tempo.
“Eu também não gosto”, disse Shmuel.
“Acho que é melhor ir para casa”, disse Bruno.
Shmuel parou de andar e olhou para ele. “Mas e o meu pai?”, disse ele. “Você falou que ia me ajudar a encontrá-lo.”
Bruno pensou um pouco. Havia feito uma promessa ao amigo e ele não era do tipo que não cumpria uma promessa, especialmente considerando que era a última vez que me veriam. “Tudo bem”, ele disse, embora estivesse bem menos seguro do que antes. “Mas onde devemos procurar?”
“Você disse que precisávamos encontrar pistas”, disse Shmuel, que estava chateado porque pensava que, se Bruno não o ajudasse, então quem ajudaria?
“Pistas, claro”, disse Bruno, concordando com a cabeça. “Você tem razão. Vamos começar a procurá-las.”
Bruno manteve sua palavra e os dois meninos passaram uma hora e meia procurando pistas pelo campo. Não sabiam ao certo o que estavam procurando, mas Bruno seguiu dizendo que um bom explorador saberia reconhecer o que procurava quando encontrasse. No entanto, eles não encontraram nada que lhes desse alguma idéia do que teria acontecido como pai de Shmuel, e estava começando a ficar escuro.
Bruno olhou para o céu e parecia que ia chover novamente. “Sinto muito, Shmuel”, disse afinal. “É uma pena que não tenhamos encontrado nenhuma pista.”
Shmuel consentiu com a cabeça, triste. Ele não estava realmente surpreso. Já não esperava encontrar nada. Mas mesmo assim tinha sido legal trazer o amigo para ver como era o lugar onde ele morava.
“Acho que agora é hora de ir para casa”, disse Bruno. “Podemos ir juntos até a cerca?”
Shmuel abriu a boca para responder, mas bem naquele instante ouviu-se um apito alto e dez soldados – o maior número deles que Bruno vira reunidos num só lugar – cercaram um setor do campo, o setor em que estavam Bruno e Shmuel.
“O que está havendo?”, sussurrou Bruno. “O que vai acontecer?”
“Isso acontece de vez em quando”, disse Shmuel. “Fazem as pessoas saírem para marchar.”
“Marchar!”, disse Bruno, desgostoso. “Não posso sair para marchar. Tenho que estar em casa a tempo do jantar. Hoje tem rosbife.”
Ssh”, disse Shmuel, pondo um dedo sobre seus lábios. “Não diga nada, senão eles ficam bravos.”
Bruno franziu a testa, mas ficou aliviado ao ver que todas as pessoas de pijama listrado daquela parte do campo estavam se reunindo, a maioria sendo empurradas pelos soldados, de maneira que ele e Shmuel ficaram escondidos no meio deles e não podiam ser vistos. Ele não sabia por que estavam todos tão assustados – afinal, marchar não era lá tão terrível – e queria sussurrar para eles que tudo ia ficar bem, que o pai dele era o comandante, e se esse era o tipo de coisa que ele queria das pessoas, então não poderia ser nada de ruim.
Os apitos soaram novamente, e desta vez o grupo, que devia ser de cerca de cem pessoas, começou a marchar lentamente, todo mundo junto, com Bruno e Shmuel ainda presos no centro. Houve algum tipo de tumulto na parte de trás, onde alguns homens pareciam se recusar a marchar, mas Bruno era pequeno demais para ver o que estava acontecendo e tudo o que ouviu foi um barulho muito alto, como o de tiros, porém não foi capaz de precisar o que era.
“Será que a marcha demora muito?”, sussurrou ele, pois estava começando a sentir fome.
“Acho que não”, disse Shmuel. “Quando as pessoas saem para marchar, eu nunca mais as vejo. Mas imagino que não demore.”
Bruno franziu o cenho novamente e olhou para o céu, e enquanto fazia isso ouviu outro barulho alto, desta vez o som de um trovão, e nesse mesmo instante o céu pareceu ficar mais escuro, quase negro, e a chuva caiu com força ainda maior do que pela manhã. Bruno fechou os olhos por um instante e sentiu os pingos lavando-lhe o corpo. Quando tornou a abri-los, não estava de fato marchando, mas sim sendo arrastado junto com o grupo de pessoas, e tudo o que podia sentir era a lama que cobria seu corpo e o pijama grudado à pele por causa da intensidade da chuva e ele quis muito estar de volta em casa, observando tudo aquilo à distância, sem tomar parte dos acontecimentos.
“Já chega”, disse ele a Shmuel. “Desse jeito eu vou pegar um resfriado aqui. Tenho que ir para casa.”
Mas, enquanto ele dizia essas palavras, seus pés o levaram a um lance de degraus, e, ao prosseguir marchando, percebeu que não estava mais chovendo, porque estavam todos se amontoando num longo cômodo que era surpreendentemente quente e devia ter sido construído de maneira bastante segura, pois a chuva não entrava por parte alguma. Na verdade o cômodo dava a impressão de ser absolutamente hermético.
“Bem, melhor agora”, ele disse, contente por estar fora da tempestade, nem que fosse por alguns minutos. “Acho que teremos que esperar aqui até a chuva passar e então iremos para casa.”
Shmuel se aproximou bastante de Bruno e olhou para ele assustado.
“Sinto muito por não termos encontrado seu pai”, disse Bruno.
“Tudo bem”, disse Shmuel.
“E sinto muito que não tenhamos podido brincar, mas, quando você for a Berlim, é só o que faremos, e eu o apresentarei a... Puxa, como era mesmo que eles se chamavam?”, Bruno se perguntou, frustrado, pois eles deveriam ser os seus três melhores amigos para toda a vida, mas tinham desaparecido de sua memória àquela altura. Ele não se lembrava de seus nomes nem de seus rostos.
“Pensando bem”, ele disse, olhando para Shmuel, “não importa se eu lembro ou não. Eles não são mais meus melhores amigos mesmo.” Ele olhou para baixo e fez algo bastante incomum para a sua personalidade: tomou a pequena mão de Shmuel e apertou-a com força entre as suas.
“Você é o meu melhor amigo, Shmuel”, disse ele. “Meu melhor amigo para a vida toda.”
Shmuel poderia ter aberto a boca para responder alguma coisa, mas Bruno não teria escutado porque neste instante ouviu-se o alto ruído de todos os que haviam marchado para dentro engolindo em seco, enquanto a porta da frente foi subitamente trancada e um forte barulho metálico ecoou vindo de fora.
Bruno ergueu uma sobrancelha, incapaz de compreender o sentido daquilo tudo, mas presumiu que tivesse algo a ver com a necessidade de manter a chuva longe e impedir que as pessoas ficassem resfriadas.
E então o cômodo ficou escuro e de alguma maneira, apesar do caos que se seguiu, Bruno percebeu que ainda estava segurando a mão de Shmuel entre as suas e nada no mundo o teria convencido a soltá-la.

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