Duas estradas se bifurcaram no meio da minha
vida,
Ouvi um sábio dizer.
Peguei a estrada menos usada.
E isso fez toda a diferença cada noite e cada dia.
— Larry Norman (pedindo desculpas a Robert
Frost)
vida,
Ouvi um sábio dizer.
Peguei a estrada menos usada.
E isso fez toda a diferença cada noite e cada dia.
— Larry Norman (pedindo desculpas a Robert
Frost)
Março desatou uma torrente de chuvas depois de um inverno
de secura anormal. Uma frente fria desceu do Canadá e foi contida
por rajadas de vento que rugiam pelo desfiladeiro, vindas do Leste
do Oregon. Ainda que a primavera certamente estivesse logo ali,
depois da esquina, o deus do inverno não iria abandonar sem luta
seu domínio conquistado com dificuldade. Havia um cobertor de
neve recente nas Cascades, e agora a chuva congelava ao bater no
chão do lado de fora da casa. Motivo suficiente para Mack se
enroscar com um livro e uma sidra quente, aconchegando-se no
calor do fogo que estalava na lareira.
Mas, em vez disso, ele passou a maior parte da manhã no
computador. Sentado confortavelmente no escritório de casa,
usando calças de pijama e uma camiseta, ele deu telefonemas de
vendas. Parava com freqüência, ouvindo o som da chuva cristalina
tilintar na janela e vendo o acúmulo vagaroso mas constante do
gelo lá fora. Estava se tornando inexoravelmente prisioneiro do
gelo em sua própria casa — e com muito prazer.
Há algo agradável nas tempestades que interrompem a rotina.
A neve ou a chuva gélida nos liberam subitamente das
expectativas, das exigências de resultados e da tirania dos
compromissos e dos horários. Ao contrário da doença, esta é uma
experiência mais coletiva do que individual. Quase podemos ouvir
um suspiro de alívio erguer-se em uníssono na cidade próxima e
no campo, onde a natureza interveio para dar uma folga aos
exaustos seres humanos. Todos os afetados pela tempestade são
unidos por uma desculpa mútua. De súbito e inesperadamente o
coração fica um pouco mais leve. Não serão necessárias desculpas
por não comparecer a algum compromisso. Todos entendem e
compartilham a mesma justificativa, e a retirada súbita de
qualquer pressão alegra a alma.
É claro que as tempestades também interrompem negócios, e,
embora umas poucas empresas tenham um ganho extra, outras
perdem dinheiro — o que significa que existem os que não sentem
júbilo quando tudo fecha temporariamente. Mas é impossível
culpar alguém pela perda de produção ou por não conseguir
chegar ao escritório. Mesmo que a situação só dure um ou dois
dias, de algum modo cada pessoa se sente dona do seu mundo
simplesmente porque aquelas gotinhas de água congelam ao bater
no chão.
Até as atividades comuns se tornam extraordinárias. Ações
rotineiras se transformam em aventuras e freqüentemente são
vivenciadas com maior clareza. No fim da tarde, Mack se encheu
de agasalhos e saiu para lutar com os quase 100 metros da
comprida entrada de veículos que vai até a caixa de correio. O gelo
havia convertido magicamente essa tarefa simples do dia-a-dia
numa batalha contra os elementos: levantou o punho em
contestação à força bruta da natureza e, num ato de desafio, riu
na cara dela. O fato de que ninguém notaria nem se incomodaria
com seu gesto pouco importava para ele — só o pensamento o fez
rir por dentro.
As pelotas de chuva gelada ardiam no rosto e nas mãos
enquanto ele subia e descia com cuidado as pequenas ondulações
do caminho. Mack se divertia pensando que parecia um
marinheiro bêbado indo com cuidado para o próximo boteco.
Quando você enfrenta a força de uma tempestade de gelo, não
caminha exatamente com ousadia, demonstrando uma confiança
incontida. Mack teve de se levantar duas vezes antes de finalmente
conseguir abraçar a caixa de correio como se fosse um amigo
desaparecido há muito.
Parou para apreciar a beleza de um mundo engolfado em
cristal. Tudo refletia luz e colaborava para o brilho crescente do fim
de tarde. As árvores no campo do vizinho tinham-se coberto com
mantos translúcidos, e agora cada uma parecia única ao seu olhar.
Era um mundo radiante e, por um momento, seu esplendor luzidio
quase retirou, ainda que por apenas alguns segundos, a Grande
Tristeza dos ombros de Mack.
Demorou quase um minuto para arrancar o gelo que havia
lacrado a tampa da caixa de correio. A recompensa por seus
esforços foi um único envelope onde havia apenas seu primeiro
nome escrito à máquina do lado de fora; sem selo, sem carimbo e
sem remetente. Curioso, ele rasgou a borda do envelope, tarefa que
não foi fácil, pois os dedos começavam a se enrijecer de frio. Dando
as costas para o vento que lhe tirava o fôlego, finalmente
conseguiu arrancar do ninho um pequeno retângulo de papel sem
dobra. A mensagem datilografada dizia simplesmente:
de secura anormal. Uma frente fria desceu do Canadá e foi contida
por rajadas de vento que rugiam pelo desfiladeiro, vindas do Leste
do Oregon. Ainda que a primavera certamente estivesse logo ali,
depois da esquina, o deus do inverno não iria abandonar sem luta
seu domínio conquistado com dificuldade. Havia um cobertor de
neve recente nas Cascades, e agora a chuva congelava ao bater no
chão do lado de fora da casa. Motivo suficiente para Mack se
enroscar com um livro e uma sidra quente, aconchegando-se no
calor do fogo que estalava na lareira.
Mas, em vez disso, ele passou a maior parte da manhã no
computador. Sentado confortavelmente no escritório de casa,
usando calças de pijama e uma camiseta, ele deu telefonemas de
vendas. Parava com freqüência, ouvindo o som da chuva cristalina
tilintar na janela e vendo o acúmulo vagaroso mas constante do
gelo lá fora. Estava se tornando inexoravelmente prisioneiro do
gelo em sua própria casa — e com muito prazer.
Há algo agradável nas tempestades que interrompem a rotina.
A neve ou a chuva gélida nos liberam subitamente das
expectativas, das exigências de resultados e da tirania dos
compromissos e dos horários. Ao contrário da doença, esta é uma
experiência mais coletiva do que individual. Quase podemos ouvir
um suspiro de alívio erguer-se em uníssono na cidade próxima e
no campo, onde a natureza interveio para dar uma folga aos
exaustos seres humanos. Todos os afetados pela tempestade são
unidos por uma desculpa mútua. De súbito e inesperadamente o
coração fica um pouco mais leve. Não serão necessárias desculpas
por não comparecer a algum compromisso. Todos entendem e
compartilham a mesma justificativa, e a retirada súbita de
qualquer pressão alegra a alma.
É claro que as tempestades também interrompem negócios, e,
embora umas poucas empresas tenham um ganho extra, outras
perdem dinheiro — o que significa que existem os que não sentem
júbilo quando tudo fecha temporariamente. Mas é impossível
culpar alguém pela perda de produção ou por não conseguir
chegar ao escritório. Mesmo que a situação só dure um ou dois
dias, de algum modo cada pessoa se sente dona do seu mundo
simplesmente porque aquelas gotinhas de água congelam ao bater
no chão.
Até as atividades comuns se tornam extraordinárias. Ações
rotineiras se transformam em aventuras e freqüentemente são
vivenciadas com maior clareza. No fim da tarde, Mack se encheu
de agasalhos e saiu para lutar com os quase 100 metros da
comprida entrada de veículos que vai até a caixa de correio. O gelo
havia convertido magicamente essa tarefa simples do dia-a-dia
numa batalha contra os elementos: levantou o punho em
contestação à força bruta da natureza e, num ato de desafio, riu
na cara dela. O fato de que ninguém notaria nem se incomodaria
com seu gesto pouco importava para ele — só o pensamento o fez
rir por dentro.
As pelotas de chuva gelada ardiam no rosto e nas mãos
enquanto ele subia e descia com cuidado as pequenas ondulações
do caminho. Mack se divertia pensando que parecia um
marinheiro bêbado indo com cuidado para o próximo boteco.
Quando você enfrenta a força de uma tempestade de gelo, não
caminha exatamente com ousadia, demonstrando uma confiança
incontida. Mack teve de se levantar duas vezes antes de finalmente
conseguir abraçar a caixa de correio como se fosse um amigo
desaparecido há muito.
Parou para apreciar a beleza de um mundo engolfado em
cristal. Tudo refletia luz e colaborava para o brilho crescente do fim
de tarde. As árvores no campo do vizinho tinham-se coberto com
mantos translúcidos, e agora cada uma parecia única ao seu olhar.
Era um mundo radiante e, por um momento, seu esplendor luzidio
quase retirou, ainda que por apenas alguns segundos, a Grande
Tristeza dos ombros de Mack.
Demorou quase um minuto para arrancar o gelo que havia
lacrado a tampa da caixa de correio. A recompensa por seus
esforços foi um único envelope onde havia apenas seu primeiro
nome escrito à máquina do lado de fora; sem selo, sem carimbo e
sem remetente. Curioso, ele rasgou a borda do envelope, tarefa que
não foi fácil, pois os dedos começavam a se enrijecer de frio. Dando
as costas para o vento que lhe tirava o fôlego, finalmente
conseguiu arrancar do ninho um pequeno retângulo de papel sem
dobra. A mensagem datilografada dizia simplesmente:
Mackenzie
Já faz um tempo. Senti sua falta.
Estarei na cabana no fim de semana que vem, se
você quiser me encontrar.
Papai
Mack se enrijeceu enquanto uma onda de náusea percorria
seu corpo e, com igual rapidez, se transmutava em ira. Esforçavase
para pensar o mínimo possível na cabana e, mesmo quando ela
lhe vinha à mente, seus pensamentos não eram agradáveis nem
bons. Se aquilo era uma piada de mau gosto, a pessoa realmente
havia se superado. E assinar “Papai” só tornava a coisa ainda mais
horrenda.
— Idiota — resmungou, pensando em Tony, o carteiro: um
italiano exageradamente amigável, com grande coração mas pouco
tato. Por que ele entregaria um envelope tão ridículo? Nem estava
selado. Mack enfiou com raiva o envelope e o bilhete no bolso do
casaco e virou-se para começar a deslizar na direção de casa. Os
sopros fortes do vento, que a princípio haviam diminuído de
intensidade, agora o empurravam, encurtando o tempo necessário
para atravessar a minigeleira que engrossava sob seus pés.
Estava se saindo bem, obrigado, até chegar à entrada de
veículos, que se inclinava um pouco para baixo e à esquerda. Sem
qualquer esforço ou intenção, começou a aumentar a velocidade,
deslizando com sapatos que tinham praticamente tanta firmeza
quanto um pato pousando num lago gelado. Com os braços
balançando loucamente na esperança de, não sabia como, manter
o equilíbrio, Mack se viu adernando de encontro à única árvore de
tamanho substancial que ladeava a entrada de veículos — a única
cujos galhos mais baixos ele havia cortado uns poucos meses
antes. Agora ela se erguia ansiosa para abraçá-lo, seminua e
aparentemente desejosa de uma pequena retribuição. Numa fração
de segundo, ele escolheu o caminho da covardia e tentou
despencar no chão, permitindo que os pés escorregassem — o que
eles de qualquer modo fariam. Melhor ter a bunda dolorida do que
arrancar lascas do rosto.
Mas a descarga de adrenalina o fez compensar
exageradamente, e em câmara lenta Mack viu os pés se erguerem à
sua frente, como se puxados para cima por alguma armadilha da
selva. Bateu com força, primeiro com a nuca, e escorregou até um
monte na base da árvore brilhosa, que pareceu se erguer acima
dele com uma expressão de presunção e nojo, além de uma certa
decepção.
O mundo pareceu ficar escuro por um instante. Ele
permaneceu ali deitado, tonto e olhando o céu, franzindo os olhos
enquanto a precipitação gelada esfriava rapidamente seu rosto
vermelho. Durante uma pausa ligeira, tudo pareceu
estranhamente quente e pacífico, com sua cólera
momentaneamente nocauteada pelo impacto.
— Agora, quem é o idiota? — murmurou consigo mesmo,
esperando que ninguém estivesse olhando.
O frio se entranhava rapidamente pelo casaco e pelo suéter, e
Mack soube que a chuva gelada que estava ao mesmo tempo se
derretendo e se congelando embaixo dele iria logo se tornar um
enorme desconforto. Gemendo e sentindo-se muito velho, rolou
apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Foi então que viu a marca de
um vermelho forte traçando sua jornada desde o ponto de impacto
até o destino final. Como se gerado pela súbita percepção do
ferimento, um martelar surdo começou a subir pela nuca.
Instintivamente ele procurou a fonte das batidas de tambor e
trouxe de volta a mão ensangüentada.
Com o gelo áspero e o cascalho afiado cortando as mãos e os
joelhos, Mack meio engatinhou, meio escorregou, até conseguir
chegar a uma parte plana da entrada de veículos.
Com um esforço considerável, finalmente pôde ficar de pé e
avançar cautelosamente, centímetro a centímetro, em direção à
casa, humilhado pelos poderes do gelo e da gravidade.
Assim que entrou, Mack se livrou metodicamente e do melhor
modo que pôde das camadas de roupa de frio, cornos dedos meio
congelados reagindo com quase tanta destreza quanto se fossem
porretes enormes na ponta dos braços. Decidiu largar aquela
bagunça molhada e manchada de sangue ali mesmo na entrada,
onde a deixara cair, e avançou dolorosamente até o banheiro para
examinar os ferimentos. Não existia dúvida de que o caminho
gelado havia vencido. Do talho na nuca escorria sangue ao redor
de algumas pedrinhas ainda encravadas no couro cabeludo. Como
havia temido, um galo significativo tinha se formado, emergindo
como uma baleia-corcunda rompendo as ondas de seu cabelo ralo.
Enquanto tentava ver a nuca com um pequeno espelho de
mão que refletia uma imagem invertida do espelho do banheiro,
Mack achou difícil fazer um curativo. Depois de uma curta
frustração, desistiu, incapaz de obrigar as mãos a irem na direção
certa e sem saber qual dos dois espelhos mentia para ele. Tateando
com cuidado ao redor do talho encharcado, conseguiu tirar os
pedaços maiores de cascalho, até que a dor ficou forte demais para
continuar. Pegou um pouco de pomada de primeiros socorros e
tapou o ferimento do melhor modo que pôde. Em seguida amarrou
uma toalha de rosto na nuca usando um pouco de gaze que
encontrou numa gaveta do banheiro. Olhando-se no espelho,
pensou que se parecia um pouco com um marinheiro rude saído
do romance Moby Dick. Isso o fez rir, depois se encolher.
Teria de esperar até que Nan chegasse em casa para receber
qualquer atendimento médico verdadeiro, uma das muitas
vantagens de ser casado com uma enfermeira. De qualquer modo,
sabia que quanto pior fosse a aparência, mais solidariedade iria
receber.
Se prestarmos bastante atenção, sempre conseguiremos
descobrir alguma compensação no sofrimento. Engoliu dois
analgésicos para diminuir a dor e mancou até a porta da frente.
Nem por um instante Mack se esqueceu do bilhete.
Remexendo na pilha de roupas molhadas e ensangüentadas,
finalmente o encontrou no bolso do casaco. Olhou, voltou para o
escritório, achou o número da agência de correio e ligou. Como
esperava, Annie, a matronal chefe do correio e guardiã dos
segredos d a população local, atendeu.
— Oi, por acaso o Tony está aí?
— Oi, Mack, é você? Reconheci sua voz.
— Claro que reconheceu.
— Desculpe, mas o Tony ainda não voltou. Na verdade, acabo
de falar com ele pelo rádio. Está na metade da Wildcat, nem
chegou à sua casa ainda. O que você quer que eu diga a ele, se
conseguir voltar vivo?
— Na verdade você já respondeu à minha pergunta.
Houve uma pausa do outro lado.
— O que há de errado, Mack? Ainda está fumando muito
bagulho, ou só faz isso nas manhãs de domingo para conseguir
suportar o culto na igreja? — Ela começou a rir, encantada com o
brilho de seu próprio senso de humor.
— Bom, Annie, você sabe que eu não fumo bagulho. Nunca
fumei e nem quero.
Claro que Annie sabia disso, mas Mack não podia se arriscar.
Não seria a primeira vez em que o senso de humor de Annie se
transformaria numa boa história que logo se tornaria um "fato".
Ele podia ver seu nome sendo acrescentado à corrente de orações
da igreja.
— Tudo bem, eu falo com o Tony outra hora, não é
importante.
— Então está certo, e fique dentro de casa, que é mais
seguro. Você sabe, um cara velho como você pode perder o senso
de equilíbrio com o passar dos anos.
Do jeito que as coisas andam, talvez Tony não consiga chegar
à sua casa.
— Obrigado, Annie. Tentarei lembrar do seu conselho. Falo
com você mais tarde. Tchau.
Sua cabeça latejava cada vez mais, pequenos martelos de
forja batendo no ritmo do coração. "Estranho", pensou, "quem
ousaria colocar algo assim na nossa caixa de correio?" Os
analgésicos ainda não haviam surtido o efeito desejado, mas eram
suficientes para embotar o início de preocupação que ele estava
sentindo, e de repente Mack ficou muito cansado. Pousou a cabeça
na mesa e pensou que havia acabado de cair no sono quando o
telefone o acordou com um susto.
— Ah... alô?
— Oi, amor. Parece que você estava dormindo.
Ele sentiu na voz de Nan uma animação incomum, mesmo
percebendo a tristeza encoberta que espreitava logo abaixo da
superfície de cada conversa. Mack ligou a luminária da mesa e
olhou o relógio, surpreso ao constatar que dormira por cerca de
duas horas.
— Ah, desculpe. Acho que cochilei um pouco.
— É, você parece meio grogue. Tudo bem?
— Tudo. — Mesmo estando quase escuro lá fora, Mack podia
ver que a tempestade não havia amainado. Tinha até depositado
mais uns 5 centímetros de gelo. Os galhos das árvores pendiam
baixos e ele sabia que alguns acabariam se partindo com o peso,
principalmente se o vento aumentasse. — Tive um pequeno
entrevero na entrada de veículos quando fui pegar a
correspondência. Mas, fora isso, tudo bem. E você?
— Ainda estou na casa da Arlene e acho que eu e as crianças
vamos passar a noite aqui. É sempre bom para a Kate estar com a
família... parece que isso restaura um pouco o seu equilíbrio. —
Arlene era a irmã de Nan, que morava do outro lado do rio, em
Washington.
— De qualquer modo, está escorregadio demais para sair.
Espero que melhore de manhã. Queria ter chegado em casa antes
de o tempo ficar tão ruim, mas o que se há de fazer? — Houve uma
pausa. — Como está tudo por aí?
— Bem, está absolutamente, espantosamente lindo e
muitíssimo mais seguro de olhar do que de andar, acredite. Eu
certamente não quero que você tente chegar aqui nessa situação.
Nada se mexe. Acho que nem o Tony conseguiu trazer a
correspondência.
— Achei que você já tinha pegado a correspondência.
— Não, achei que o Tony tinha passado e fui pegar. E —
Mack hesitou, olhando o bilhete sobre a mesa — não havia
nenhuma correspondência. Liguei para Annie e ela disse que o
Tony provavelmente não ia conseguir subir a ladeira. De qualquer
modo — ele mudou rapidamente de assunto para evitar mais
perguntas —, como está a Kate?
Houve uma pausa e depois um longo suspiro. Quando Nan
falou, sua voz saiu num sussurro, e Mack percebeu que ela estava
tapando o bocal do outro lado.
— Mack, eu gostaria de saber. Por mais que eu tente, não
consigo. É como se eu falasse com uma pedra. Quando tem gente
da família por perto, ela parece sair um pouco da casca, mas
depois some de novo. Simplesmente não sei o que fazer. Rezei e
rezei para que Papai nos auxiliasse a encontrar um modo de
ajudá-la, mas... — Nan parou de novo — parece que ele não está
ouvindo.
Era assim. Papai era o nome com que Nan se referia a Deus e
expressava o deleite que lhe provocava sua amizade íntima com
ele.
— Querida, tenho certeza de que Deus sabe o que está
fazendo. Tudo vai dar certo. — Essas palavras não lhe trouxeram
conforto, mas ele esperava que pudessem aliviar a preocupação
que sentia na voz dela.
— Eu sei — Nan suspirou. — Só gostaria que ele andasse
mais depressa.
— Eu também — foi tudo o que Mack conseguiu dizer. —
Bom, você e as crianças fiquem aí, onde é seguro. Dê lembranças à
Arlene e ao Jimmy e agradeça a eles por mim. Espero ver você
amanhã.
— Eu também. Se cuide e me ligue se precisar de alguma
coisa. Tchau.
Mack sentou-se e olhou o bilhete. Era confuso e doloroso
tentar evitar a cacofonia de emoções perturbadoras e de imagens
sombrias que nublava sua mente — um milhão de pensamentos
viajando a um milhão de quilômetros por hora. Por fim desistiu,
dobrou o bilhete, enfiou-o numa pequena lata que ficava sobre a
mesa e apagou a luz.
Conseguiu encontrar algo para aquecer no microondas,
depois pegou alguns cobertores e travesseiros e foi para a sala de
estar. Ao olhar rapidamente para o relógio, viu que o programa de
Bill Moyer tinha acabado de começar; era seu programa predileto,
que ele tentava não perder nunca. Moyer era uma das
pouquíssimas pessoas que Mack adoraria conhecer: um homem
brilhante e franco, capaz de exprimir com clareza incomum uma
compaixão intensa pelas pessoas e pela verdade.
Quase sem pensar e sem afastar os olhos da televisão, Mack
estendeu a mão para a mesinha de canto, pegou um porta-retrato
com a imagem de uma menininha e o apertou contra o peito. Com
a outra mão puxou os cobertores até o queixo e se aninhou mais
fundo no sofá.
Logo o som de roncos suaves encheu o ar, enquanto o
aparelho exibia um estudante no Zimbábue, que fora espancado
por falar contra o governo. Mas Mack já havia saído da sala para
lutar com seus sonhos. Talvez essa noite não houvesse pesadelos,
só visões, quem sabe, de gelo, árvores e gravidade.
seu corpo e, com igual rapidez, se transmutava em ira. Esforçavase
para pensar o mínimo possível na cabana e, mesmo quando ela
lhe vinha à mente, seus pensamentos não eram agradáveis nem
bons. Se aquilo era uma piada de mau gosto, a pessoa realmente
havia se superado. E assinar “Papai” só tornava a coisa ainda mais
horrenda.
— Idiota — resmungou, pensando em Tony, o carteiro: um
italiano exageradamente amigável, com grande coração mas pouco
tato. Por que ele entregaria um envelope tão ridículo? Nem estava
selado. Mack enfiou com raiva o envelope e o bilhete no bolso do
casaco e virou-se para começar a deslizar na direção de casa. Os
sopros fortes do vento, que a princípio haviam diminuído de
intensidade, agora o empurravam, encurtando o tempo necessário
para atravessar a minigeleira que engrossava sob seus pés.
Estava se saindo bem, obrigado, até chegar à entrada de
veículos, que se inclinava um pouco para baixo e à esquerda. Sem
qualquer esforço ou intenção, começou a aumentar a velocidade,
deslizando com sapatos que tinham praticamente tanta firmeza
quanto um pato pousando num lago gelado. Com os braços
balançando loucamente na esperança de, não sabia como, manter
o equilíbrio, Mack se viu adernando de encontro à única árvore de
tamanho substancial que ladeava a entrada de veículos — a única
cujos galhos mais baixos ele havia cortado uns poucos meses
antes. Agora ela se erguia ansiosa para abraçá-lo, seminua e
aparentemente desejosa de uma pequena retribuição. Numa fração
de segundo, ele escolheu o caminho da covardia e tentou
despencar no chão, permitindo que os pés escorregassem — o que
eles de qualquer modo fariam. Melhor ter a bunda dolorida do que
arrancar lascas do rosto.
Mas a descarga de adrenalina o fez compensar
exageradamente, e em câmara lenta Mack viu os pés se erguerem à
sua frente, como se puxados para cima por alguma armadilha da
selva. Bateu com força, primeiro com a nuca, e escorregou até um
monte na base da árvore brilhosa, que pareceu se erguer acima
dele com uma expressão de presunção e nojo, além de uma certa
decepção.
O mundo pareceu ficar escuro por um instante. Ele
permaneceu ali deitado, tonto e olhando o céu, franzindo os olhos
enquanto a precipitação gelada esfriava rapidamente seu rosto
vermelho. Durante uma pausa ligeira, tudo pareceu
estranhamente quente e pacífico, com sua cólera
momentaneamente nocauteada pelo impacto.
— Agora, quem é o idiota? — murmurou consigo mesmo,
esperando que ninguém estivesse olhando.
O frio se entranhava rapidamente pelo casaco e pelo suéter, e
Mack soube que a chuva gelada que estava ao mesmo tempo se
derretendo e se congelando embaixo dele iria logo se tornar um
enorme desconforto. Gemendo e sentindo-se muito velho, rolou
apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Foi então que viu a marca de
um vermelho forte traçando sua jornada desde o ponto de impacto
até o destino final. Como se gerado pela súbita percepção do
ferimento, um martelar surdo começou a subir pela nuca.
Instintivamente ele procurou a fonte das batidas de tambor e
trouxe de volta a mão ensangüentada.
Com o gelo áspero e o cascalho afiado cortando as mãos e os
joelhos, Mack meio engatinhou, meio escorregou, até conseguir
chegar a uma parte plana da entrada de veículos.
Com um esforço considerável, finalmente pôde ficar de pé e
avançar cautelosamente, centímetro a centímetro, em direção à
casa, humilhado pelos poderes do gelo e da gravidade.
Assim que entrou, Mack se livrou metodicamente e do melhor
modo que pôde das camadas de roupa de frio, cornos dedos meio
congelados reagindo com quase tanta destreza quanto se fossem
porretes enormes na ponta dos braços. Decidiu largar aquela
bagunça molhada e manchada de sangue ali mesmo na entrada,
onde a deixara cair, e avançou dolorosamente até o banheiro para
examinar os ferimentos. Não existia dúvida de que o caminho
gelado havia vencido. Do talho na nuca escorria sangue ao redor
de algumas pedrinhas ainda encravadas no couro cabeludo. Como
havia temido, um galo significativo tinha se formado, emergindo
como uma baleia-corcunda rompendo as ondas de seu cabelo ralo.
Enquanto tentava ver a nuca com um pequeno espelho de
mão que refletia uma imagem invertida do espelho do banheiro,
Mack achou difícil fazer um curativo. Depois de uma curta
frustração, desistiu, incapaz de obrigar as mãos a irem na direção
certa e sem saber qual dos dois espelhos mentia para ele. Tateando
com cuidado ao redor do talho encharcado, conseguiu tirar os
pedaços maiores de cascalho, até que a dor ficou forte demais para
continuar. Pegou um pouco de pomada de primeiros socorros e
tapou o ferimento do melhor modo que pôde. Em seguida amarrou
uma toalha de rosto na nuca usando um pouco de gaze que
encontrou numa gaveta do banheiro. Olhando-se no espelho,
pensou que se parecia um pouco com um marinheiro rude saído
do romance Moby Dick. Isso o fez rir, depois se encolher.
Teria de esperar até que Nan chegasse em casa para receber
qualquer atendimento médico verdadeiro, uma das muitas
vantagens de ser casado com uma enfermeira. De qualquer modo,
sabia que quanto pior fosse a aparência, mais solidariedade iria
receber.
Se prestarmos bastante atenção, sempre conseguiremos
descobrir alguma compensação no sofrimento. Engoliu dois
analgésicos para diminuir a dor e mancou até a porta da frente.
Nem por um instante Mack se esqueceu do bilhete.
Remexendo na pilha de roupas molhadas e ensangüentadas,
finalmente o encontrou no bolso do casaco. Olhou, voltou para o
escritório, achou o número da agência de correio e ligou. Como
esperava, Annie, a matronal chefe do correio e guardiã dos
segredos d a população local, atendeu.
— Oi, por acaso o Tony está aí?
— Oi, Mack, é você? Reconheci sua voz.
— Claro que reconheceu.
— Desculpe, mas o Tony ainda não voltou. Na verdade, acabo
de falar com ele pelo rádio. Está na metade da Wildcat, nem
chegou à sua casa ainda. O que você quer que eu diga a ele, se
conseguir voltar vivo?
— Na verdade você já respondeu à minha pergunta.
Houve uma pausa do outro lado.
— O que há de errado, Mack? Ainda está fumando muito
bagulho, ou só faz isso nas manhãs de domingo para conseguir
suportar o culto na igreja? — Ela começou a rir, encantada com o
brilho de seu próprio senso de humor.
— Bom, Annie, você sabe que eu não fumo bagulho. Nunca
fumei e nem quero.
Claro que Annie sabia disso, mas Mack não podia se arriscar.
Não seria a primeira vez em que o senso de humor de Annie se
transformaria numa boa história que logo se tornaria um "fato".
Ele podia ver seu nome sendo acrescentado à corrente de orações
da igreja.
— Tudo bem, eu falo com o Tony outra hora, não é
importante.
— Então está certo, e fique dentro de casa, que é mais
seguro. Você sabe, um cara velho como você pode perder o senso
de equilíbrio com o passar dos anos.
Do jeito que as coisas andam, talvez Tony não consiga chegar
à sua casa.
— Obrigado, Annie. Tentarei lembrar do seu conselho. Falo
com você mais tarde. Tchau.
Sua cabeça latejava cada vez mais, pequenos martelos de
forja batendo no ritmo do coração. "Estranho", pensou, "quem
ousaria colocar algo assim na nossa caixa de correio?" Os
analgésicos ainda não haviam surtido o efeito desejado, mas eram
suficientes para embotar o início de preocupação que ele estava
sentindo, e de repente Mack ficou muito cansado. Pousou a cabeça
na mesa e pensou que havia acabado de cair no sono quando o
telefone o acordou com um susto.
— Ah... alô?
— Oi, amor. Parece que você estava dormindo.
Ele sentiu na voz de Nan uma animação incomum, mesmo
percebendo a tristeza encoberta que espreitava logo abaixo da
superfície de cada conversa. Mack ligou a luminária da mesa e
olhou o relógio, surpreso ao constatar que dormira por cerca de
duas horas.
— Ah, desculpe. Acho que cochilei um pouco.
— É, você parece meio grogue. Tudo bem?
— Tudo. — Mesmo estando quase escuro lá fora, Mack podia
ver que a tempestade não havia amainado. Tinha até depositado
mais uns 5 centímetros de gelo. Os galhos das árvores pendiam
baixos e ele sabia que alguns acabariam se partindo com o peso,
principalmente se o vento aumentasse. — Tive um pequeno
entrevero na entrada de veículos quando fui pegar a
correspondência. Mas, fora isso, tudo bem. E você?
— Ainda estou na casa da Arlene e acho que eu e as crianças
vamos passar a noite aqui. É sempre bom para a Kate estar com a
família... parece que isso restaura um pouco o seu equilíbrio. —
Arlene era a irmã de Nan, que morava do outro lado do rio, em
Washington.
— De qualquer modo, está escorregadio demais para sair.
Espero que melhore de manhã. Queria ter chegado em casa antes
de o tempo ficar tão ruim, mas o que se há de fazer? — Houve uma
pausa. — Como está tudo por aí?
— Bem, está absolutamente, espantosamente lindo e
muitíssimo mais seguro de olhar do que de andar, acredite. Eu
certamente não quero que você tente chegar aqui nessa situação.
Nada se mexe. Acho que nem o Tony conseguiu trazer a
correspondência.
— Achei que você já tinha pegado a correspondência.
— Não, achei que o Tony tinha passado e fui pegar. E —
Mack hesitou, olhando o bilhete sobre a mesa — não havia
nenhuma correspondência. Liguei para Annie e ela disse que o
Tony provavelmente não ia conseguir subir a ladeira. De qualquer
modo — ele mudou rapidamente de assunto para evitar mais
perguntas —, como está a Kate?
Houve uma pausa e depois um longo suspiro. Quando Nan
falou, sua voz saiu num sussurro, e Mack percebeu que ela estava
tapando o bocal do outro lado.
— Mack, eu gostaria de saber. Por mais que eu tente, não
consigo. É como se eu falasse com uma pedra. Quando tem gente
da família por perto, ela parece sair um pouco da casca, mas
depois some de novo. Simplesmente não sei o que fazer. Rezei e
rezei para que Papai nos auxiliasse a encontrar um modo de
ajudá-la, mas... — Nan parou de novo — parece que ele não está
ouvindo.
Era assim. Papai era o nome com que Nan se referia a Deus e
expressava o deleite que lhe provocava sua amizade íntima com
ele.
— Querida, tenho certeza de que Deus sabe o que está
fazendo. Tudo vai dar certo. — Essas palavras não lhe trouxeram
conforto, mas ele esperava que pudessem aliviar a preocupação
que sentia na voz dela.
— Eu sei — Nan suspirou. — Só gostaria que ele andasse
mais depressa.
— Eu também — foi tudo o que Mack conseguiu dizer. —
Bom, você e as crianças fiquem aí, onde é seguro. Dê lembranças à
Arlene e ao Jimmy e agradeça a eles por mim. Espero ver você
amanhã.
— Eu também. Se cuide e me ligue se precisar de alguma
coisa. Tchau.
Mack sentou-se e olhou o bilhete. Era confuso e doloroso
tentar evitar a cacofonia de emoções perturbadoras e de imagens
sombrias que nublava sua mente — um milhão de pensamentos
viajando a um milhão de quilômetros por hora. Por fim desistiu,
dobrou o bilhete, enfiou-o numa pequena lata que ficava sobre a
mesa e apagou a luz.
Conseguiu encontrar algo para aquecer no microondas,
depois pegou alguns cobertores e travesseiros e foi para a sala de
estar. Ao olhar rapidamente para o relógio, viu que o programa de
Bill Moyer tinha acabado de começar; era seu programa predileto,
que ele tentava não perder nunca. Moyer era uma das
pouquíssimas pessoas que Mack adoraria conhecer: um homem
brilhante e franco, capaz de exprimir com clareza incomum uma
compaixão intensa pelas pessoas e pela verdade.
Quase sem pensar e sem afastar os olhos da televisão, Mack
estendeu a mão para a mesinha de canto, pegou um porta-retrato
com a imagem de uma menininha e o apertou contra o peito. Com
a outra mão puxou os cobertores até o queixo e se aninhou mais
fundo no sofá.
Logo o som de roncos suaves encheu o ar, enquanto o
aparelho exibia um estudante no Zimbábue, que fora espancado
por falar contra o governo. Mas Mack já havia saído da sala para
lutar com seus sonhos. Talvez essa noite não houvesse pesadelos,
só visões, quem sabe, de gelo, árvores e gravidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário