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quarta-feira, 13 de março de 2013

A Cabana- Capítulo 14 – Verbos e outras liberdades

Deus é um Verbo.
— Buckminster Fuller

Mack saiu para o sol do meio da tarde. Sentia uma mistura
estranha, como se estivesse ao mesmo tempo torcido como um
trapo e plenamente vivo. Que dia incrível tinha sido aquele e ainda
estavam no meio da tarde! Por um momento ficou indeciso, antes
de ir até o lago. Quando viu as canoas amarradas ao cais, sentiu
uma certa resistência, mas a idéia de entrar numa e passear pelo
lago o energizou pela primeira vez em anos.
Desamarrando a última, na extremidade do cais, entrou
cautelosamente e começou a remar para o outro lado. Nas duas
horas seguintes circulou pelo lago, explorando recantos e fendas.
Encontrou dois rios e alguns córregos que, vindo de cima,
alimentavam o lago e a seguir o esvaziavam na direção das bacias
inferiores. Descobriu um lugar perfeito para ficar à deriva olhando
a cachoeira. Flores alpinas brotavam em toda parte, acrescentando
manchas de cor à paisagem. Era o sentimento de paz mais intenso
e consistente que Mack experimentava havia uma enormidade de
tempo — se é que jamais havia experimentado.
Chegou a cantar algumas músicas só porque teve vontade.
Cantar também era algo que não fazia há muito tempo. Recuou ao
passado e começou a cantarolar a musiquinha ingênua
que costumava cantar para Kate: "K-K-K-Katie... linda Katie, você é
a única que eu adoro..."
Balançou a cabeça ao pensar na filha, tão forte e tão frágil.
Imaginou qual seria o modo de alcançar o coração dela. Não se
surpreendia mais com a facilidade com que as lágrimas chegavam
aos seus olhos.
Num determinado ponto virou-se para olhar os redemoinhos
feitos pelo remo e quando se virou de novo Sarayu estava sentada
na proa, olhando-o. Aquela presença súbita o fez dar um pulo.
— Nossa! — exclamou ele. — Você me assustou.
— Desculpe, Mackenzie, mas o jantar está quase pronto e é
hora de voltar para a cabana.
— Você estava comigo o tempo todo? — perguntou Mack,
consciente do jorro de adrenalina.
— Claro. Sempre estou com você.
— Então por que não percebi? Ultimamente consigo saber
quando você está por perto.
— O fato de você saber ou não saber não tem nada a ver com
o fato de eu estar aqui. Sempre estou com você. Algumas vezes
quero que não perceba especialmente a minha presença.
Mack assentiu, entendendo, e virou a canoa para a margem
distante onde ficava a cabana. A presença dela provocava um
arrepio na coluna. Os dois sorriram simultaneamente.
— Sempre poderei ver ou ouvir você como agora, mesmo
quando estiver de volta em casa?
Sarayu sorriu.
— Mackenzie, você sempre pode falar comigo e eu sempre
estarei com você, quer sinta minha presença ou não.
— Agora sei disso, mas vou escutar você?
— Vai aprender a ouvir meus pensamentos nos seus,
Mackenzie — ela garantiu.
— Vai ser claro? E se eu confundir você com outra voz? E se
eu errar?
Sarayu riu e o som parecia o de água cascateando, como se
fosse música.
— Claro que você vai errar. Todo mundo erra, mas vai
começar a reconhecer melhor minha voz à medida que nosso
relacionamento for crescendo.
— Não quero errar — resmungou Mack.
— Ah, Mackenzie, os erros fazem parte da vida e Papai
trabalha seus propósitos neles também.
Sarayu estava achando divertido e Mack não pôde evitar um
sorriso. Dava para entender muito bem o que ela dizia.
— Isso é muito diferente de tudo que eu conhecia, Sarayu.
Não me entenda mal, adoro o que vocês me deram neste fim de
semana. Mas não faço idéia de como voltar à minha vida normal.
Tenho a sensação de que era mais fácil viver com Deus quando eu
pensava Nele como o mestre exigente ou mesmo quando eu tinha
que conviver com a solidão da Grande Tristeza.
— Você acha? De verdade?
— Pelo menos dava a impressão de que as coisas estavam sob
controle.
— Dava a impressão é o termo certo. O que você ganhou com
isso? A Grande Tristeza e uma dor insuportável, uma dor que se
derramava até mesmo sobre as pessoas de quem você mais gosta.
— Segundo Papai, isso é porque eu tenho medo de emoções.
Sarayu riu alto.
— Achei aquela conversinha hilariante.
— Eu tenho medo de emoções — admitiu Mack, meio
perturbado porque ela parecia não dar importância. — Não gosto
da sensação que elas produzem. Magoei outros por causa das
minhas emoções e não consigo confiar nelas. Vocês criaram todas,
ou só as boas?
— Mackenzie. — Sarayu pareceu se erguer no ar. Ainda era
difícil olhar diretamente para ela, mas com o sol do fim da tarde se
refletindo na água ficava ainda pior. — As emoções são as cores da
alma. São espetaculares e incríveis. Quando você não sente, o
mundo fica opaco e sem cor. Pense em como a Grande Tristeza
reduziu a gama de cores na sua vida para matizes monótonos,
cinza e pretos.
— Então me ajude a entendê-las — implorou Mack.
— Na verdade, não há muito o que entender. As emoções
simplesmente são. Nem boas nem ruins, apenas existem. Eis algo
que vai ajudá-lo a entender melhor, Mackenzie. Os paradigmas dão
força às percepções e as percepções dão força às emoções. Não se
assuste, vou explicar. A maioria das emoções são reações àquilo
que você percebe: o que acha verdadeiro numa determinada
situação. Se sua percepção for falsa, sua reação emocional a ela
também será falsa. Então verifique suas percepções e além disso
verifique a verdade de seus paradigmas, dos seus padrões, daquilo
em que você acredita. Só porque você acredita firmemente numa
coisa não significa que ela seja verdadeira. Disponha-se
a reexaminar aquilo em que acredita. Quanto mais você viver na
verdade, mais suas emoções irão ajudá-lo a ver com clareza. Mas,
mesmo então, não confie mais nelas do que em mim.
Mack deixou o remo girar nas mãos, permitindo que ele
seguisse os movimentos da água.
— Tenho a impressão de que viver a partir do relacionamento
com você, confiando e falando com você, é bem mais complicado
do que simplesmente seguir as regras.
— Que regras são essas, Mackenzie?
— Você sabe, todas as coisas que as Escrituras dizem que
devemos fazer.
— Certo... — disse ela com alguma hesitação. — E quais são
elas?
— Você sabe — respondeu ele com um certo sarcasmo. —
Fazer o bem e evitar o mal, ser caridoso com os pobres, ler a
Bíblia, rezar e ir à igreja. Coisas assim.
— Sei. E como isso funciona para você?
Ele riu.
— Bom, nunca fiz nada disso muito bem. Tenho momentos
melhores, mas sempre há algo com que estou lutando ou algo que
me faz sentir culpado. Acabei de pensar que precisava me esforçar
mais, porém acho difícil manter essa motivação.
— Mackenzie! — Seu tom era de censura, as palavras voando
com afeto. — A Bíblia não lhe diz para seguir regras. Ela é uma
imagem de Jesus. Ainda que as palavras possam lhe dizer como
Deus é e o que Ele pode querer de você, é impossível fazer isso
sozinho. A vida está Nele e em mais ninguém. Minha nossa, será
possível que você se ache capaz de viver a retidão de Deus
sozinho?
— Bom, acho que sim, mais ou menos... — disse ele sem
graça. — Mas você tem de admitir que as regras e os princípios são
mais simples do que os relacionamentos.
— É verdade que os relacionamentos são muito mais
complicados do que as regras, mas as regras nunca vão lhe dar as
respostas para as questões profundas do coração. E nunca irão
amar você.
Mergulhando a mão na água, ele brincou, vendo a
repercussão de seus movimentos.
— Estou percebendo como tenho poucas respostas... para
qualquer coisa. Você me virou de cabeça para baixo e pelo avesso,
ou sei lá o quê.
— Mackenzie, a religião tem a ver com respostas certas e
algumas dessas respostas são de fato certas. Mas eu tenho a ver
com o processo que leva você à resposta viva, e só ele é capaz de
mudá-lo por dentro. Há muitas pessoas inteligentes que dizem um
monte de coisas certas a partir do cérebro porque aprenderam com
alguém quais são as respostas certas. Mas essas pessoas não me
conhecem. Assim, na verdade, como as respostas delas podem ser
certas, mesmo que estejam certas? — Ela sorriu. — Ficou confuso?
Mas pode ter certeza: mesmo que possam estar certas, elas estão
erradas.
— Entendo o que você está dizendo. Eu fiz isso durante anos,
depois da escola dominical. Tinha as respostas certas algumas
vezes, mas não conhecia vocês. Este fim de semana,
compartilhando a vida com vocês, foi muito mais esclarecedor do
que todas aquelas respostas.
Continuaram a se mover preguiçosamente na água.
— Então verei você de novo? — perguntou ele, hesitando.
— Claro. Você pode me ver numa obra de arte, na música, no
silêncio, nas pessoas, na Criação, mesmo na sua alegria e na sua
tristeza. Minha capacidade de me comunicar é ilimitada, vivendo e
transformando, e tudo isso sempre estará sintonizado com
a bondade e o amor de Papai. E você irá me ouvir e me ver na
Bíblia de modos novos. Simplesmente não procure regras e
princípios. Procure o relacionamento: um modo de estar conosco.
— Mesmo assim não será o mesmo do que ter você na proa
do meu barco.
— Não, mas será muito melhor do que você pode imaginar,
Mackenzie. E, quando você finalmente dormir neste mundo,
teremos uma eternidade juntos, face a face.
E então ela sumiu. Apesar de ele saber que não havia sumido
de verdade.
— Então, por favor, ajude-me a viver na verdade — disse
Mack em voz alta. "Talvez isso seja uma oração", pensou.
* * *
Quando entrou no chalé, Mack viu que Jesus e Sarayu já
estavam lá, sentados em volta da mesa. Papai estava ocupada
como sempre, trazendo pratos de comidas com
cheiros maravilhosos. Era evidente a ausência de qualquer
verdura. Mack foi para o banheiro se lavar e quando retornou os
outros três já haviam começado a comer. Puxou a quarta cadeira e
sentou-se.
— Vocês realmente não precisam comer, não é? — perguntou,
enquanto começava a colocar em sua tigela algo que parecia uma
fina sopa de frutos do mar, com lulas, peixes e outras iguarias
indefinidas.
— Não precisamos fazer nada — declarou Papai com certa
ênfase.
— Então por que comem?
— Para estar com você, querido. Você precisa comer. Então,
que desculpa melhor para ficarmos juntos?
— De qualquer modo, todos nós gostamos de cozinhar —
acrescentou Jesus. — E eu gosto um bocado de comida. Nada
como uns deliciosos pratos salgados para deixar felizes as papilas
gustativas. Acompanhe isso com um pudim de caramelo ou
um tiramisu e chá quente. Humm! Nada pode ser melhor.
Todos riram, depois voltaram a passar os pratos e a se servir.
Enquanto comia, Mack ouvia a conversa animada entre os três.
Falavam e riam como velhos amigos que se gostavam e se
conheciam mais intimamente do que qualquer outro ser humano.
Mack sentia inveja da conversa despreocupada mas respeitosa e se
perguntou o que seria necessário para compartilhar isso com Nan
e talvez até com alguns amigos.
De novo ficou pasmo com a maravilha e o puro absurdo do
momento. Voltavam-lhe à mente as conversas incríveis que o
haviam envolvido nas 24 horas anteriores. Uau! Só estivera ali por
um dia? E o que deveria fazer com isso quando voltasse para casa?
Sabia que contaria tudo a Nan. Ela podia não acreditar e
Mack não iria culpá-la, pois ele provavelmente também não
acreditaria.
À medida que sua mente ia acelerando, ele sentiu que se
afastava dos outros e fechou os olhos. Nada disso podia ser real.
De repente houve um silêncio de morte. Abriu devagar um dos
olhos, esperando acordar de novo em casa. Em vez disso, Papai,
Jesus e Sarayu o estavam encarando com sorrisos no rosto. Ele
nem tentou se explicar. Sabia que eles sabiam.
Em vez disso, apontou para um dos pratos e perguntou:
— Posso experimentar um pouco disso?
As interações foram retomadas e dessa vez ele escutou. Mas
de novo sentiu que ia se afastando. Para reagir, decidiu fazer uma
pergunta.
— Por que vocês nos amam, os humanos? Eu acho... —
Percebeu que não havia formulado bem a pergunta. — Acho que o
que eu quero perguntar é: por que vocês me amam, quando não
tenho nada para lhes oferecer?
— Pense um pouco nisso, Mack — respondeu Jesus. — Você
não experimenta uma forte sensação de liberdade ao saber que não
pode nos oferecer nada, pelo menos nada capaz de acrescentar ou
diminuir o que somos? Isso deve trazer um grande alívio,
porque elimina qualquer exigência de comportamento.
— E você ama mais os seus filhos quando eles se comportam
bem? — acrescentou Papai.
— Não. Estou entendendo. — Mack fez uma pausa. — Mas eu
me sinto mais realizado porque eles estão na minha vida. E vocês?
— Não — respondeu Papai. — Já somos totalmente realizados
em nós mesmos. Vocês estão destinados a viver em comunhão
também, já que são feitos à nossa imagem. Assim, sentir isso por
seus filhos ou por qualquer coisa que "acrescente" é perfeitamente
natural e certo. Lembre-se, Mackenzie, que por natureza eu não
sou um ser humano, apesar de termos escolhido estar com você
neste fim de semana. Sou verdadeiramente humano em Jesus,
mas sou algo totalmente separado em minha natureza.
— Você sabe, claro que sabe — disse Mack em tom de
desculpa —, que eu só posso seguir essa linha de raciocínio até um
determinado ponto e depois me perco e meu cérebro parece
derreter.
— Entendo — admitiu Papai. — É impossível compreender
com a mente algo que você não pode experimentar.
Mack pensou nisso por um momento.
— Acho que sim... Pois é... Está vendo? Está derretendo.
Quando os outros pararam de rir, Mack prosseguiu:
— Vocês sabem como me sinto grato por tudo, mas jogaram
coisas demais no meu colo neste fim de semana. O que faço
quando voltar? Qual é sua expectativa com relação a mim, agora?
Jesus e Papai se viraram para Sarayu, que estava com o garfo
cheio de alguma coisa a caminho da boca. Ela pousou-o
lentamente de volta no prato e depois respondeu à expressão
confusa de Mack.
— Mack — começou ela —, você deve perdoar esses dois. Os
humanos têm uma tendência a estruturar a linguagem de acordo
com sua independência e com sua necessidade de comportamento.
Assim, quando ouço a linguagem sofrer abusos em favor das
regras e não ser usada para compartilhar a vida conosco, é difícil
permanecer em silêncio.
— Como deve ser — acrescentou Papai.
— Então o que foi exatamente que eu disse? — perguntou
Mack, agora bastante curioso.
— Mack, vá em frente e termine de mastigar. Nós podemos
conversar enquanto você come.
Mack percebeu que também estava com o garfo a caminho da
boca. Mastigou agradecido o bocado enquanto Sarayu começava a
falar. À medida que fazia isso, ela pareceu se alçar da cadeira e
tremeluzir com uma dança de tons e cores sutis,
enchendo suavemente a sala com uma variedade de aromas.
— Deixe-me responder com uma pergunta. Por que você acha
que nós criamos os Dez Mandamentos?
De novo Mack estava com o garfo a meio caminho da boca,
mas mesmo assim mastigou o bocado enquanto pensava na
resposta.
— Acho, pelo menos foi o que me ensinaram, que é um
conjunto de regras que vocês esperavam que os humanos
obedecessem para viver com retidão e em estado de graça perante
vocês.
— Se isso fosse verdade, e não é — respondeu Sarayu —,
quantos você acha que viveram com retidão suficiente para entrar
em nossas boas graças?
— Não muitos, se as pessoas são como eu.
— Na verdade, só um conseguiu: Jesus. Ele obedeceu a letra
da lei e realizou completamente o espírito dela. Mas entenda,
Mackenzie: para fazer isso, ele teve de confiar totalmente em mim e
depender totalmente de mim.
— Então por que vocês nos deram esses mandamentos?
— Na verdade, queríamos que vocês desistissem de tentar ser
justos sozinhos. Era um espelho para revelar como o rosto fica
imundo quando se vive com independência.
— Mas tenho certeza de que vocês sabem que há muitos que
acham que se tornam justos seguindo as regras.
— Mas é possível limpar o rosto com o mesmo espelho que
mostra como você está sujo? Não há misericórdia nem graça nas
regras, nem mesmo para um erro. Por isso Jesus realizou todas
elas por vocês, para que elas não tivessem mais poder sobre vocês.
Agora ela estava com força total, as feições crescendo e
movendo-se.
— Mas tenha em mente que, se você viver sua vida sozinho e
de forma independente, a promessa é vazia. Jesus afastou a
exigência da lei. Ela não tem mais poder de acusar ou comandar.
Jesus é a promessa e o cumprimento.
— Está dizendo que não preciso seguir as regras? — Agora
Mack havia parado completamente de comer e estava concentrado
na conversa.
— Sim. Em Jesus você não está sob nenhuma lei. Todas as
coisas são legítimas.
— Não pode estar falando sério! — gemeu Mack.
— Criança — interrompeu Papai —, você ainda não ouviu
nada.
— Mackenzie — continuou Sarayu —, só têm medo da
liberdade os que não podem confiar que nós vivemos neles. Tentar
manter a lei é na verdade uma declaração de independência, um
modo de manter o controle.
— É por isso que gostamos tanto da lei? Para nos dar algum
controle? — perguntou Mack.
— É muito pior do que isso — retomou Sarayu. — Ela dá o
poder de julgar os outros e de se sentir superior a eles. Vocês
acreditam que estão vivendo num padrão mais elevado do
que aqueles a quem vocês julgam. Aplicar regras, sobretudo em
suas expressões mais sutis, como responsabilidade e expectativa, é
uma tentativa inútil de criar a certeza a partir da incerteza. E, ao
contrário do que você possa pensar, eu gosto demais da incerteza.
As regras não podem trazer a liberdade. Elas só têm o poder de
acusar.
— Uau! — De repente Mack percebeu o que Sarayu havia
dito. — Está dizendo que a responsabilidade e a expectativa são
apenas outra forma de regras? Ouvi direito?
— É — exclamou Papai de novo. — Agora chegamos ao ponto:
Sarayu, ele é todo seu!
Mack procurou concentrar-se em Sarayu, o que não era uma
tarefa simples.
Sarayu sorriu para Papai e de novo para Mack. Começou a
falar lenta e decididamente:
— Mackenzie, eu sempre prefiro um verbo a um substantivo.
Parou e esperou. Mack não tinha muita certeza de ter entendido.
— Hein?
— Eu — ela abriu as mãos para incluir Jesus e Papai — sou
um verbo. Sou o que sou. Serei o que serei. Sou um verbo! Sou
viva, dinâmica, sempre ativa e em movimento. Sou um ser-verbo.
Mack tinha uma expressão vazia no rosto. Entendia as
palavras, mas ainda não achava o sentido.
— E, como minha essência é um verbo — continuou ela —,
sou mais ligada a verbos do que a substantivos. Verbos como
confessar, arrepender-se, viver, amar, responder, crescer, colher,
mudar, semear, correr, dançar, cantar e assim por diante. Os
humanos, por outro lado, gostam de pegar um verbo vivo e cheio
de graça e transformá-lo num substantivo ou num princípio morto
que fede a regras. Os substantivos existem porque existe um
universo criado e uma realidade física, mas, se o universo for
apenas uma massa de substantivos, ele está morto. A não ser "eu
sou", não existem verbos e os verbos são o que torna o universo
vivo.
— E... — Mack ainda estava lutando, mas pareceu que um
brilho de luz começava a iluminar seu pensamento. — E isso
significa exatamente o quê?
Sarayu pareceu não se perturbar com sua falta de
entendimento.
— Para que alguma coisa se mova da morte para a vida, você
precisa colocar algo vivo e móvel na mistura. Passar de uma coisa
que é apenas um substantivo para algo dinâmico e imprevisível,
para algo vivo e no tempo presente — um verbo —, é mover-se da
lei para a graça. Posso dar alguns exemplos?
— Por favor. Sou todo ouvidos.
Jesus deu um risinho e Mack piscou para ele antes de se
voltar para Sarayu. A sombra levíssima de um sorriso atravessou o
rosto dela enquanto retomava:
— Então vamos usar suas duas palavras: responsabilidade e
expectativa. Antes que suas palavras se tornassem substantivos,
eram nomes que continham movimento e experiência: a
capacidade de reagir e a prontidão. Minhas palavras são vivas e
dinâmicas, cheias de vida e possibilidades. As suas são mortas,
cheias de leis, medo e julgamento. Por isso você não encontrará a
palavra responsabilidade nas Escrituras.
— Minha nossa! — Mack franziu a testa, começando a
perceber aonde isso ia dar. — Por outro lado, nós a usamos um
bocado.
Ela continuou:
— A religião usa a lei para ganhar força e controlar as
pessoas de que precisa para sobreviver. Eu, ao contrário, dou a
capacidade de reagir e sua reação é estar livre para amar e servir
em todas as situações. Por isso, cada momento é diferente, único e
maravilhoso. Como sou sua capacidade de reagir livremente, tenho
de estar presente em vocês. Se eu simplesmente lhes desse uma
responsabilidade, não teria de estar com vocês. A responsabilidade
seria uma tarefa a realizar, uma obrigação a cumprir, algo para
vencer ou fracassar.
— Minha nossa, minha nossa — disse Mack outra vez, sem
muito entusiasmo.
— Usemos o exemplo da amizade e veremos que remover o
elemento de vida de um substantivo pode alterar um
relacionamento. Mack, se você e eu somos amigos, há
uma prontidão dentro de nosso relacionamento. Quando nos
vemos ou quando estamos separados, há a prontidão de estarmos
juntos, de rirmos e falarmos. Essa prontidão não tem definição
concreta: é viva, dinâmica, e tudo que emerge do fato de estarmos
juntos é um dom único que não é compartilhado por mais
ninguém. Mas o que acontece se eu mudar "prontidão" por
"expectativa", verbalizada ou não? Subitamente a lei entra
no nosso relacionamento. Agora você espera que eu aja de um
modo que atenda às suas expectativas. Nossa amizade viva se
deteriora rapidamente e se torna uma coisa morta, com regras e
exigências. Não tem mais a ver com nós dois, mas com o que os
amigos devem fazer ou com as responsabilidades de um bom
amigo.
— Ou — observou Mack — com as responsabilidades de
marido, de pai, empregado ou qualquer outra coisa. Entendi.
Prefiro viver na prontidão.
— Eu também — disse Sarayu.
— Mas — argumentou Mack —, se não tivéssemos
expectativas e responsabilidades, tudo não iria simplesmente
desmoronar?
— Só se você fizer parte do mundo fora de mim, regido pela
lei. As responsabilidades e as expectativas são a base para a culpa,
a vergonha e o julgamento. Elas fornecem a estrutura que faz do
comportamento a base para a identidade e o valor de alguém.
Você sabe muito bem como é não atender às expectativas de
alguém.
— Sei mesmo! — murmurou Mack. — É uma idéia que me
traz tristes lembranças. — Parou brevemente, com um novo
pensamento relampejando. — Você está dizendo que não tem
expectativas com relação a mim?
Agora Papai falou:
— Querido, eu nunca tive expectativas com relação a você
nem a ninguém. A idéia por trás disso exige que alguém não saiba
o futuro ou o resultado e esteja tentando controlar o
comportamento do outro para chegar ao resultado desejado. Os
humanos tentam esse controle principalmente por meio das
expectativas. Eu o conheço e sei tudo sobre você. Por que teria
uma expectativa diferente daquilo que já sei? Seria idiotice. E,
além disso, como não a tenho, vocês nunca me desapontam.
— O quê? Você nunca ficou desapontado comigo? — Mack
estava se esforçando bastante para digerir isso.
— Nunca! — declarou Papai enfaticamente. — O que tenho é
uma prontidão constante e viva no nosso relacionamento e lhe dou
a capacidade de reagir a qualquer situação e circunstância em que
você se encontrar. Se passar a contar com expectativas
e responsabilidades, você não me conhece nem confia em mim.
— E pela mesma razão — exclamou Jesus — você vive no
medo.
— Mas... — Mack não estava convencido. — Mas você não
quer que a gente estabeleça prioridades? Você sabe: Deus
primeiro, depois sei lá o quê, seguido por mais não sei o quê?
— O problema de viver segundo prioridades — disse Sarayu
— é que se vê tudo como uma hierarquia, uma pirâmide, e você e
eu já falamos sobre isso. Se você puser Deus no topo, o que isso
realmente significa? Quanto tempo você me dá antes de poder
cuidar do resto do seu dia, da parte que lhe interessa muitíssimo
mais?
Papai interrompeu de novo.
— Veja bem, Mackenzie, eu não quero simplesmente um
pedaço de você e da sua vida. Mesmo que você pudesse, e não
pode, me dar o pedaço maior, não é isso que eu quero. Quero você
inteiro e todas as partes de você e de seu dia.
Agora Jesus falou de novo.
— Mack, não quero ser o primeiro numa lista de valores.
Quero estar no centro de tudo. Quando vivo em você, podemos
viver juntos tudo que acontece com você. Em vez de uma pirâmide,
quero ser como o centro de um móbile, onde tudo em sua vida —
seus amigos, sua família, seu trabalho, os pensamentos, as
atividades — esteja ligado a mim, mas se movimente ao vento,
para dentro e para fora, para trás e para a frente, numa incrível
dança do ser.
— E eu — concluiu Sarayu — sou o vento. — Ela deu um
sorriso enorme e fez uma reverência.
Houve silêncio enquanto Mack procurava se controlar.
Estivera segurando a borda da mesa com as duas mãos, como se
quisesse agarrar algo tangível diante daquele tiroteio de idéias e
imagens.
— Bom, chega disso — declarou Papai, levantando-se da
cadeira. — É hora de diversão! Vocês vão em frente enquanto eu
tiro as coisas que podem estragar. Cuido dos pratos mais tarde.
— E as orações? — perguntou Mack.
— Nada é um ritual, Mack — disse Papai, pegando alguns
pratos de comida. — Portanto, esta noite vamos fazer uma coisa
diferente. Você vai gostar!
Enquanto se levantava e se virava para acompanhar Jesus
até a porta dos fundos, Mack sentiu uma mão no ombro e virou-se.
Sarayu estava parada ali, olhando-o com intensidade.
— Mackenzie, se você me permitir, gostaria de lhe dar um
presente para esta noite. Posso tocar seus olhos e curá-los só por
esta noite?
Mack ficou surpreso.
— Eu enxergo bastante bem.
— Na verdade — disse Sarayu em tom de desculpa —, você vê
muito pouco, embora para um ser humano enxergue bastante
bem. Mas só por esta noite eu adoraria que você visse um pouco
do que nós vemos.
— Então está bem — concordou Mack. — Por favor, toque
meus olhos e até mais, se quiser.
Enquanto Sarayu estendia as mãos para ele, Mack fechou os
olhos. O toque dela era como gelo, inesperado e empolgante. Um
tremor delicioso o atravessou e Mack ergueu as mãos para segurar
as dela junto ao rosto. Não havia nada ali e ele começou
lentamente a abrir os olhos.

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