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quarta-feira, 13 de março de 2013

A Cabana- Capítulo 16 – Manhã de tristezas

Um Deus infinito pode se dar inteiro a cada um de
seus filhos.
Ele não se distribui de modo que cada um tenha
uma parte,
mas a cada um ele se dá inteiro, tão integralmente
como se não houvesse outros.
— A. W. Tozer

Mack teve a sensação de que acabara de entrar num sono
profundo, sem sonhos, quando sentiu uma mão sacudindo-o para
acordar.
— Mack, acorde. É hora de irmos. — A voz era familiar, mas
profunda, como de alguém que também tivesse acabado de
acordar.
— Hein? — gemeu ele. — Que horas são? — murmurou
enquanto tentava descobrir onde estava e o que estava fazendo.
— É hora de ir! — repetiu o sussurro.
Mack saiu da cama resmungando e procurou até encontrar o
interruptor de luz. Depois da escuridão de breu, a claridade foi
ofuscante e ele demorou até conseguir abrir os olhos e se esforçar
para ver o visitante.
O homem parado junto dele se parecia um pouco com Papai:
digno, mais velho, magro e mais alto do que Mack. O cabelo muito
branco estava preso num rabo-de-cavalo, e o bigode e
o cavanhaque eram grisalhos. Camisa xadrez com mangas
enroladas, jeans e botas de caminhada completavam a vestimenta
de alguém pronto para pôr o pé na trilha.
— Papai? — perguntou Mack.
— Sim, filho.
Mack balançou a cabeça.
— Ainda está brincando comigo, não é?
— Sempre — disse ele com um sorriso. E, respondendo à
pergunta seguinte de Mack antes que ela fosse feita: — Nesta
manhã você vai precisar de um pai. Vamos indo. Tem tudo de que
você precisa na cadeira e na mesa ao pé da sua cama. Encontro-o
na cozinha, onde você pode comer alguma coisa antes de sairmos.
Mack assentiu. Não se incomodou em perguntar aonde
estaria indo. Se Papai desejasse que ele soubesse, teria dito. Vestiu
rapidamente as roupas do tamanho exato, semelhantes às de
Papai, e calçou um par de botas de caminhada. Parou rapidamente
no banheiro para se lavar e entrou na cozinha.
Jesus e Papai estavam perto da bancada, parecendo muito
mais descansados do que Mack. Ele já ia falar quando Sarayu
entrou pela porta dos fundos com um grande embrulho. Parecia
um longo saco de dormir, amarrado com uma tira presa em cada
ponta para ser carregado facilmente. Entregou-o a Mack e ele
sentiu imediatamente um perfume maravilhoso que vinha do
embrulho. Era uma mistura de ervas e flores aromáticas que ele
pensou reconhecer. Pôde sentir cheiro de canela e de hortelã junto
com sais e frutas.
— Isso é um presente para mais tarde. Papai vai lhe mostrar
como usá-lo. — Ela sorriu e ele sentiu uma espécie de abraço.
— Você pode carregar — acrescentou Papai. — Você colheu
essas plantas com Sarayu ontem.
— Meu presente vai esperar aqui até sua volta — sorriu Jesus
e também abraçou Mack.
Os dois saíram pelos fundos e Mack ficou sozinho com Papai,
que estava fritando ovos com bacon.
— Papai — perguntou Mack, surpreso ao ver como havia
ficado fácil chamá-lo assim. — Não vai comer?
— Nada é um ritual, Mackenzie. Você precisa disso, eu não.
— Ele sorriu. — Mastigue devagar. Você tem bastante tempo e
comer depressa demais não é bom para a digestão.
Mack comeu devagar e em silêncio, simplesmente
desfrutando a presença de Papai.
Num determinado momento, Jesus apareceu para informar
que havia posto as ferramentas de que precisariam do lado de fora
da porta. Papai agradeceu, Jesus lhe deu um beijo nos lábios e
saiu pela porta dos fundos.
Mack estava ajudando a limpar os poucos pratos quando
perguntou:
— Você realmente o ama, não é? Quero dizer, Jesus.
— Sei de quem você está falando — respondeu Papai, rindo.
Parou de lavar a frigideira. — De todo o coração! Imagino que haja
algo muito especial num filho unigênito. — Papai piscou para
Mack e continuou: — Isso faz parte do modo único pelo qual eu o
conheço.
Quando acabaram, Mack acompanhou Papai para fora. O
alvorecer se anunciava nos picos das montanhas, as cores do
nascer do sol invadindo o cinza da noite. Mack pegou o presente de
Sarayu e o pendurou no ombro. Papai lhe entregou uma pequena
picareta e pôs uma mochila às costas. Em seguida pegou uma pá
com uma das mãos, uma bengala com a outra e, sem dizer uma
palavra, passou pelo jardim e pelo pomar indo na direção do lado
direito do lago.
Quando chegaram ao início da trilha havia luz suficiente para
andar com facilidade.
Ali Papai parou e apontou a bengala para uma árvore fora do
caminho. Mack pôde ver que alguém marcara a árvore com um
pequeno arco vermelho quase imperceptível.
Aquilo não significava nada para ele e Papai não deu
explicação. Em vez disso, virou-se e seguiu pelo caminho, andando
com facilidade.
O presente de Sarayu era relativamente leve e Mack usou o
cabo da picareta como bengala. O caminho levou-os a atravessar
um dos riachos e a entrar mais fundo na floresta. Mack podia
ouvir Papai trauteando uma cantiga, mas não a reconheceu.
Enquanto andavam, Mack pensou na miríade de coisas que
experimentara nos dias anteriores. As conversas com cada um dos
três, juntos e separados, o tempo passado com Sophia, as orações
de que havia participado, a contemplação do céu estrelado
com Jesus, a caminhada pelo lago. A comemoração da noite
anterior completara tudo, até mesmo a reconciliação com seu pai
— tanta cura com tão poucas palavras. Era difícil absorver tal
quantidade de experiências e informações.
Enquanto pensava e avaliava o que havia aprendido, Mack
percebeu quantas perguntas ainda tinha para fazer. Mas sentia
que ainda não era hora. Sabia apenas que nunca mais seria o
mesmo e se perguntava o que significariam essas mudanças para
Nan e seus filhos, especialmente Kate. Mas havia uma coisa que o
estava incomodando. Por fim rompeu o silêncio.
— Papai?
— Sim, filho.
— Sophia me ajudou a entender muita coisa sobre Missy
ontem. E realmente foi útil conversar com Papai. Ah, quero dizer,
com você. — Mack estava confuso, mas Papai parou e sorriu como
se entendesse. Mack prosseguiu: — É estranho eu precisar
falar sobre isso com você também. Quero dizer, você é muito mais
do que um pai, se é que isso faz sentido.
— Entendo, Mackenzie. Estamos completando o círculo.
Perdoar seu pai ontem foi extremamente importante para você
poder me conhecer como pai hoje. Não precisa explicar mais.
De algum modo Mack sabia que estavam chegando ao fim de
uma jornada e que Papai estava trabalhando para ajudá-lo a dar
os últimos passos. Papai prosseguiu:
— Não havia possibilidade de criar a liberdade sem um custo,
como você sabe. — Papai olhou para baixo, com as cicatrizes
visíveis marcadas indelevelmente nos pulsos. — Eu sabia que
minha Criação iria se rebelar, que escolheria a independência e a
morte, e sabia o que me custaria abrir um caminho para a
reconciliação. A independência do ser humano liberou o que
parece a você um mundo de caos aleatório e apavorante.
Eu poderia ter impedido o que aconteceu com Missy? A resposta é
sim.
Mack olhou para Papai, os olhos fazendo a pergunta que não
precisava ser verbalizada. Ele continuou:
— Primeiro, se não tivesse havido a Criação, não haveria
essas questões.
Em segundo lugar, eu poderia ter optado por interferir
ativamente no que aconteceu com ela. Jamais considerei a
possibilidade de deixar de criar, e interferir no caso de Missy não
era uma opção, por causa de propósitos que você não pode
entender agora. Nesse ponto tudo que tenho a lhe oferecer como
resposta é o meu amor, minha bondade e meu relacionamento
com você. Eu não tive a intenção de fazer Missy morrer, mas isso
não significa que não possa usar a morte dela para o bem.
Mack balançou a cabeça, triste.
— Está certo. Não entendo direito. Por um segundo acho que
vou compreender, mas depois toda a dor da perda parece crescer e
me dizer que o que eu compreendi simplesmente não pode ser
verdade. Mas confio em você...
De repente irrompeu esse novo pensamento, surpreendente e
maravilhoso.
— Papai, eu confio em você!
Papai sorriu de volta para ele.
— Eu sei, filho, eu sei.
Virou-se e voltou a caminhar pela trilha, seguido por Mack,
agora com o coração mais leve e apaziguado. Logo começaram uma
subida relativamente fácil e o ritmo diminuiu. Ocasionalmente
Papai parava e batia numa pedra ou numa árvore grande
do caminho, indicando em cada uma a presença do pequeno arco
vermelho. Antes que Mack pudesse fazer a pergunta óbvia, Papai
se virava e continuava pela trilha.
À medida que avançavam, as árvores iam rareando e Mack
pôde vislumbrar campos rochosos onde deslizamentos de terra
haviam tirado trechos da floresta algum tempo antes de a trilha ser
aberta. Pararam uma vez para um rápido descanso e
Mack aproveitou para beber um pouco da água fresca que Papai
colocara nos cantis.
Pouco depois da parada, o caminho ficou bem íngreme e o
ritmo da caminhada diminuiu ainda mais. Mack achou que deviam
ter andado por quase duas horas quando saíram do meio das
árvores. Para chegar à trilha delineada na encosta adiante teriam
de passar por uma grande área de rochas e pedregulhos.
De novo papai parou, pousou sua mochila e enfiou a mão
dentro.
— Estamos quase chegando, filho — falou, entregando um
cantil a Mack.
— Estamos? — perguntou Mack, olhando para o solitário e
desolado terreno rochoso à frente.
— Estamos! — foi só o que Papai respondeu.
Papai escolheu uma pequena pedra perto do caminho e,
colocando a mochila e a pá ao lado, sentou-se. Parecia perturbado.
— Quero mostrar uma coisa que vai ser muito dolorosa para
você.
— Está bem. — O estômago de Mack começou a se revirar
enquanto ele se sentava e pousava a picareta e o presente de
Sarayu sobre os joelhos. Os aromas, reforçados pelo sol da manhã,
preencheram seus sentidos com beleza e trouxeram alguma paz. —
O que é?
— Para ajudá-lo a ver, quero tirar mais uma coisa que
obscurece seu coração.
Mack soube imediatamente o que era e olhou para o chão
entre seus pés. Papai falou gentilmente, tranqüilizando-o.
— Filho, isso não é para envergonhar você. Não uso
humilhação, nem culpa, nem condenação. Elas não produzem
uma fagulha de plenitude ou de justiça e por isso foram pregadas
em Jesus na cruz.
Esperou, deixando que esse pensamento penetrasse em Mack
e lavasse parte do sentimento de vergonha que ele sentia. Depois
continuou:
— Hoje estamos na trilha da cura para encerrar essa parte da
sua jornada. Não só para você, mas para outras pessoas também.
Hoje vamos jogar uma pedra grande no lago e as ondulações vão
chegar a lugares que você não imagina. Você já sabe o que eu
quero, não sabe?
— Acho que sim — murmurou Mack, sentindo emoções que
subiam aceleradas, saindo de um cômodo trancado em seu
coração.
— Filho, você precisa falar, precisa verbalizar isso.
Agora não havia como se conter e, enquanto lágrimas quentes
jorravam de seus olhos, Mack, soluçando, começou a confessar.
— Papai — ele disse chorando —, como posso perdoar aquele
filho da puta que matou minha Missy? Se ele estivesse aqui hoje,
não sei o que eu faria. Sei que não é certo, mas quero feri-lo como
ele me feriu... se eu não puder ter justiça, ainda quero vingança.
Papai simplesmente deixou a torrente sair de Mack,
esperando que a onda passasse.
— Mack, perdoar esse homem é entregá-lo a mim e permitir
que eu o redima.
— Redimi-lo? — De novo Mack sentiu o fogo da raiva e da
dor. — Não quero que você o redima! Quero que o machuque,
castigue, mande para o inferno... — Sua voz ficou no ar.
Papai esperou com paciência que as emoções passassem.
— Estou travado, Papai. Simplesmente não posso esquecer o
que ele fez, posso? — implorou Mack.
— Perdoar não significa esquecer, Mack. Significa soltar a
garganta da outra pessoa.
— Mas eu achava que você esquecia os nossos pecados.
— Mack, eu sou Deus. Não esqueço nada. Sei de tudo. Para
mim, esquecer é optar por me limitar. Filho — a voz de Papai ficou
baixa e Mack olhou-o diretamente nos olhos profundos e
castanhos —, por causa de Jesus, não há agora nenhuma lei
exigindo que eu traga seus pecados à mente. Eles se foram e não
interferem no nosso relacionamento.
— Mas esse homem...
— Ele também é meu filho. Quero redimi-lo.
— E depois? Você quer que eu simplesmente o perdoe, que
fique tudo bem e que nós nos tornemos amigos? — disse Mack
baixinho, mas com sarcasmo.
— Você não tem relacionamento com esse homem, pelo
menos ainda não tem. O perdão não estabelece um
relacionamento. Em Jesus eu perdoei todos os humanos por
seus pecados contra mim, mas só alguns escolheram relacionar-se
comigo. Mackenzie, você não vê que o perdão é um poder incrível,
um poder que você compartilha conosco, um poder que Jesus dá a
todos em quem ele reside, para que a reconciliação possa crescer?
Quando Jesus perdoou os que o pregaram à cruz, eles deixaram de
dever qualquer coisa, tanto a ele quanto a Mim. No meu
relacionamento com aqueles homens, jamais falarei do que eles
fizeram nem irei envergonhá-los ou constrangê-los.
— Não creio que eu seja capaz de fazer isso — respondeu
Mack baixinho.
— Quero que você faça. O perdão existe em primeiro lugar
para aquele que perdoa, para liberá-lo de algo que vai destruí-lo,
que vai acabar com sua alegria e capacidade de amar integral e
abertamente. Você acha que esse homem se importa com a dor e o
tormento que lhe causou? No mínimo ele se alimenta com seu
sofrimento. Você não quer cortar isso? Ao fazê-lo, irá libertar o
homem de um fardo que ele carrega, quer saiba ou não, quer
reconheça ou não. Quando você opta por perdoar o outro, você o
ama melhor.
— Eu não o amo.
— Hoje não, você não o ama. Mas eu amo, Mack, não pelo
que ele se tornou, mas pela criança mutilada e deformada pela dor.
Quero ajudá-lo a assumir a natureza que encontra mais poder no
amor e no perdão do que no ódio.
— Então isso significa — de novo Mack sentia um pouco de
raiva pela direção que a conversa havia tomado — que, se eu
perdoar esse homem, estarei deixando que ele brinque com Kate
ou com minha primeira neta?
— Mackenzie — Papai foi forte e firme. — Eu já lhe disse que
o perdão não cria um relacionamento. A não ser que as pessoas
falem a verdade sobre o que fizeram e mudem a mente e o
comportamento, não é possível um relacionamento de confiança.
Quando você perdoa alguém, certamente liberta essa pessoa do
julgamento, mas, se não houver uma verdadeira mudança, não
pode ser estabelecido nenhum relacionamento verdadeiro.
— Então o perdão não exige que eu finja que o que ele fez
nunca aconteceu?
— Como seria possível? Você perdoou seu pai ontem à noite.
Algum dia você vai esquecer o que ele lhe fez?
— Acho que não.
— Mas agora você pode amá-lo, apesar disso. A mudança dele
permite. O perdão não exige de modo algum que você confie
naquele a quem perdoou. Mas, caso essa pessoa finalmente
confesse e se arrependa, você descobrirá em seu coração um
milagre que irá lhe permitir estender a mão e começar a construir
uma ponte de reconciliação entre os dois. Algumas vezes, e isso
talvez pareça incompreensível para você agora, essa estrada pode
até mesmo levar ao milagre da confiança totalmente restaurada.
Mack escorregou para o chão e se recostou na pedra onde
estivera sentado. Examinou a terra sob seus pés.
— Papai, acho que entendo o que você está dizendo. Mas
parece que, se eu perdoar esse sujeito, ele vai ficar livre. Como
posso desculpá-lo pelo que fez? É justo para Missy deixar de ficar
com raiva dele?
— Mackenzie, o perdão não desculpa nada. Acredite, esse
homem pode ser qualquer coisa, menos livre. E você não tem o
dever de fazer justiça nesse caso. Eu cuidarei disso. E, quanto
a Missy, ela já o perdoou.
— Já? — Mack nem levantou os olhos. — Como pôde?
— Por causa de minha presença nela. É o único modo pelo
qual o verdadeiro perdão é possível.
Mack sentiu Papai sentar-se ao seu lado, no chão, mas não
olhou para cima. Enquanto os braços de Papai o envolviam,
começou a chorar.
— Deixe isso tudo sair — ouviu o sussurro de Papai e
finalmente se entregou. Fechou os olhos enquanto as lágrimas
jorravam. As lembranças de Missy inundaram de novo sua mente:
visões de livros de colorir, lápis de cor, vestido rasgado e
ensangüentado. Chorou até ter derramado toda a escuridão, todo o
anseio e a perda, até não restar nada.
Com os olhos fechados, balançando para trás e para a frente,
implorou:
— Me ajude, Papai. Me ajude! O que eu faço? Como posso
perdoá-lo?
— Diga a ele.
Mack levantou os olhos, como que esperando ver um homem
que nunca havia encontrado.
Mas não havia ninguém.
— Como, Papai?
— Só diga em voz alta. Há poder no que meus filhos
declaram.
Mack começou a sussurrar, primeiro hesitante, depois com
convicção crescente:
— Eu te perdôo. Eu te perdôo. Eu te perdôo.
Papai o abraçou com força.
— Mackenzie, você é uma alegria enorme.
Quando ele finalmente se controlou, Papai lhe entregou um
lenço umedecido para limpar o rosto. Depois Mack se levantou, a
princípio meio inseguro.
— Uau! — disse, rouco, tentando encontrar uma palavra
capaz de descrever a jornada emocional por que havia passado.
Sentia-se vivo.
Entregou o lenço de volta a Papai e perguntou: — Então, tudo
bem se eu ainda sentir raiva?
Papai foi rápido em responder:
— Sem dúvida! O que ele fez foi terrível. Ele causou uma dor
tremenda a muitas pessoas. Isso é errado e a raiva é a resposta
certa para algo tão errado. Mas não deixe que a raiva, a dor e a
perda que você sente o impeçam de perdoar e de tirar as mãos do
pescoço dele.
Papai pegou sua mochila e a colocou no ombro.
— Filho, talvez você tenha de declarar seu perdão uma
centena de vezes no primeiro e no segundo dia, mas a cada dia
serão menos vezes, até que um dia você perceberá que perdoou
completamente. E vai chegar o momento em que rezará pela
plenitude dele e o entregará a mim, para que meu amor queime na
vida dele qualquer vestígio de corrupção. Por mais incompreensível
que possa parecer no momento, talvez um dia você conheça esse
homem num contexto diferente.
Mack gemeu. Por mais que tudo que escutava lhe revirasse o
estômago, no coração ele sabia que era verdade. Os dois se
levantaram e Mack se virou na trilha para voltar na direção de
onde tinham vindo.
— Mack, nós não terminamos.
Mack parou.
— Verdade? Achei que era por isso que você me trouxe aqui.
— Era, mas eu lhe disse que tinha uma coisa para mostrar,
uma coisa que você me pediu para fazer. Estamos aqui para levar
Missy para casa.
De repente tudo fez sentido. Ele olhou o presente de Sarayu e
percebeu para que servia. Em algum lugar naquela paisagem
desolada o assassino havia escondido o corpo de Missy e eles
tinham vindo recuperá-lo.
— Obrigado — foi tudo que pôde dizer enquanto de novo uma
cascata de lágrimas rolava por seu rosto, como se viesse de um
reservatório infinito. — Odeio todas essas lágrimas, esse negócio de
ficar chorando como um idiota — ele gemeu.
— Ah, filho — disse Papai com ternura. — Jamais
desconsidere a maravilha das suas lágrimas. Elas podem ser águas
curativas e uma fonte de alegria. Algumas vezes são as melhores
palavras que o coração pode falar.
Mack parou e encarou Papai. Jamais havia olhado para um
amor, uma delicadeza, uma esperança e uma alegria tão puras.
— Mas você prometeu que um dia não haverá mais lágrimas.
Estou ansioso por isso.
Papai sorriu, encostou os dedos no rosto de Mack e
gentilmente enxugou as faces marcadas pelas lágrimas.
— Mackenzie, este mundo está cheio de lágrimas, mas, se
você lembra, prometi que seria Eu quem iria enxugá-las de seus
olhos.
Mack conseguiu sorrir enquanto sua alma continuava a se
derreter e se curar no amor desse Pai.
— Aqui — disse Papai e lhe entregou um cantil. — Tome um
bom gole. Não quero ver você se encolhendo como uma ameixa
seca antes de tudo isso acabar.
Mack não conseguiu evitar uma gargalhada que a princípio
pareceu deslocada, mas que depois, pensando bem, soube que era
perfeita. Era um riso de esperança e de alegria restauradas... do
processo de encerramento.
Papai foi à frente. Antes de deixar o caminho principal e
seguir por uma trilha que penetrava na massa de pedras
espalhadas, parou e com sua bengala bateu numa pedra grande.
Indicou para Mack o mesmo arco vermelho. E Mack descobriu que
o caminho que estavam seguindo fora marcado pelo homem que
levara sua filha. Enquanto caminhavam, Papai explicou a Mack
que nenhum corpo fora encontrado porque esse homem procurava
lugares para escondê-los meses antes de seqüestrar as meninas.
No meio da área pedregosa, Papai saiu do caminho e entrou
num labirinto de pedras e paredões da montanha, não sem antes
apontar novamente para a marca, agora familiar, numa face de
rocha próxima. Mack podia ver que, a não ser que a pessoa
soubesse o que estava procurando, as marcas passariam
facilmente despercebidas. Dez minutos depois Papai parou diante
de uma fenda onde dois afloramentos de pedra se encontravam.
Havia uma pequena pilha de pedregulhos na base, um deles
com o símbolo do assassino.
— Pode me ajudar? — pediu a Mack e começou a retirar as
pedras maiores. — Isso esconde a entrada de uma caverna.
Assim que a entrada ficou livre, eles tiraram com a picareta e
a pá a terra endurecida e o cascalho que bloqueavam a passagem.
De repente o resto de entulho cedeu e apareceu a entrada de uma
pequena caverna que provavelmente já fora a toca de algum
animal durante a hibernação. Um odor rançoso de podridão saiu,
deixando Mack engasgado.
Papai enfiou a mão na extremidade do rolo dado por Sarayu e
tirou um pedaço de pano do tamanho de um lenço de cabeça.
Amarrou-o em volta da boca e do nariz de Mack e imediatamente
um cheiro doce cortou o fedor da caverna.
Só havia espaço suficiente para entrarem se arrastando.
Tirando uma poderosa lanterna da mochila, Papai se enfiou
primeiro no buraco, com Mack logo atrás, ainda levando o presente
de Sarayu.
Só demoraram alguns minutos para encontrar o tesouro
agridoce. Num pequeno afloramento de rocha, Mack viu o corpo
que ele presumiu ser o de Missy, de rosto para cima, coberto por
um pano sujo e apodrecido. No mesmo instante soube que
a verdadeira Missy não estava ali.
Papai desembrulhou o que Sarayu lhes dera e no mesmo
instante a toca se encheu de maravilhosos perfumes vivos. O pano
por baixo do corpo de Missy era frágil, mas Mack conseguiu
levantá-la e colocá-la no meio de todas as flores e especiarias.
Então Papai a enrolou com ternura e levou-a até a entrada. Mack
saiu primeiro e Papai lhe passou o tesouro. Nenhuma palavra fora
dita, a não ser as de Mack, que murmurava baixinho:
— Eu te perdôo... eu te perdôo...
Antes de deixarem o local, Papai pegou a rocha com o arco
vermelho e colocou-a sobre a entrada. Mack não prestou muita
atenção, pois estava absorvido pelos próprios pensamentos,
enquanto segurava com ternura o corpo da filha junto ao coração.

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