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terça-feira, 12 de março de 2013

A Cabana- Capítulo 3 – O mergulho

A alma é curada ao estar com crianças.
— Fedor Dostoievski

O Parque Estadual do Lago Wallowa, no Oregon, e a área ao
redor têm sido chamados, com propriedade, de Pequena Suíça da
América. Montanhas escarpadas e agrestes erguem-se até quase 3
mil metros e, no meio delas, há inúmeros vales escondidos cheios
de riachos, trilhas de caminhada e altas campinas cobertas de
flores silvestres. O lago Wallowa é a passagem para a Área de
Recreação Nacional de Hells Canyon, onde está o maior
desfiladeiro da América do Norte. Esculpido no decorrer de séculos
pelo rio Snake, em alguns lugares tem mais de 3 quilômetros do
topo à base, e às vezes 16 quilômetros de uma borda à outra.
Na Área de Recreação há mais de 1.400 quilômetros de
trilhas de caminhada. Os vestígios da presença da tribo Nez Perce,
que antes dominava a região, estão espalhados por essa vastidão,
junto com os dos colonos brancos que passavam a caminho do
Oeste. A cidade de Joseph, ali perto, é assim chamada por causa
de um poderoso chefe tribal cujo nome indígena significava Trovão
Rolando Montanha Abaixo. A área oferece abundante flora e vida
selvagem, incluindo alces, ursos, cervos e cabritos monteses.
O lago Wallowa mede 8 quilômetros de comprimento e um e
meio de largura e foi formado, segundo alguns, por geleiras que ali
se encontravam há 9 milhões de anos. Fica a cerca de um
quilômetro e meio da cidade de Joseph, a uma altitude de 1.340
metros. A temperatura da água é de tirar o fôlego durante a maior
parte do ano, mas fica agradável no fim do verão para um nado
rápido perto da margem.
Mack e as crianças preencheram os três dias seguintes com
diversão e lazer. Missy, aparentemente satisfeita com as respostas
do pai, não voltou ao assunto da princesa, mesmo quando uma
caminhada diurna os levou perto de penhascos altíssimos.
Passaram algumas horas andando de pedalinho junto à
margem do lago, esforçaram-se ao máximo para ganhar um prêmio
no minigolfe, cavalgaram nas trilhas e visitaram as lojinhas da
cidade de Joseph.
Ao longo do fim de semana, duas outras famílias juntaram-se
magicamente ao mundo dos Phillips. Como acontece
freqüentemente, as crianças deram início à amizade. Josh gostou
especialmente de conhecer os Ducette, pois a filha mais velha,
Amber, era uma linda mocinha mais ou menos da sua idade. Kate
adorou implicar com o irmão mais velho por causa disso, e ele
reagiu indo irritado para a carreta-barraca, vociferando e
resmungando. Amber tinha uma irmã, Emmy, apenas um ano
mais nova do que Kate, e as duas passaram a brincar juntas.
Vicky e Emil Ducette tinham viajado de sua casa no Colorado,
onde Emil trabalhava como agente policial do Serviço de Pesca e
Vida Selvagem e Vicky cuidava do lar e do filho caçula, J. J., que
agora tinha quase um ano.
Os Ducette apresentaram Mack e os filhos a um casal
canadense que haviam conhecido antes, Jesse e Sarah Madison.
Pareciam tranqüilos, despretensiosos, e Mack gostou deles à
primeira vista. Os dois trabalhavam como consultores
independentes, Jesse na área de recursos humanos e Sarah na de
administração. Missy ligou-se logo a Sarah e as duas costumavam
ir ao acampamento dos Ducette para ajudar Vicky com J. J.
O domingo nasceu radioso e todo o grupo se empolgou com a
idéia de pegar o teleférico do lago Wallowa até o topo do monte
Howard — 2.484 metros acima do nível do mar. Jesse e Sarah
convidaram todos para almoçar em um restaurante no topo da
montanha. Depois passariam o resto do dia caminhando até os
cinco pontos de observação e os mirantes.
Armados de máquinas fotográficas, óculos escuros, garrafas
d'água e protetor solar, partiram no meio da manhã. Como já
imaginavam, fizeram uma verdadeira festa com hambúrgueres,
batatas fritas e milk-shakes no restaurante. A altitude estimulou o
apetite — até Missy seguiu devorar um hambúrguer inteiro e a
maior parte das outras guloseimas.
Depois do almoço, caminharam pelas trilhas até os mirantes
próximos. Dali se divisava um panorama deslumbrante que ia até
o horizonte, semeado de pequenas cidades. No fim da tarde
estavam todos cansados e felizes. Missy, que Jesse havia carregado
nos ombros até os dois últimos mirantes, dormia no colo do pai
enquanto chacoalhavam no teleférico de descida.
"Este é um daqueles momentos raros e preciosos", pensou
Mack, "que pegam a gente de surpresa e quase tiram o fôlego. Se
Nan estivesse aqui, seria realmente perfeito."
Ajeitou o peso de Missy numa posição mais confortável para
ela e tirou o cabelo do rosto da menina para olhá-la. A sujeira e o
suor do dia só faziam, estranhamente, aumentar seu ar de
inocência e sua beleza. "Por que eles têm de crescer?" pensou ao
dar um beijo na testa da filha.
Naquela noite, as três famílias se reuniram para um último
jantar juntos. Mais tarde, os adultos sentaram-se bebericando café
ao redor de uma fogueira, enquanto Emil contava suas aventuras
em operações contra quadrilhas de contrabando de animais em
extinção. Era um narrador hábil e sua profissão oferecia um
enorme elenco de histórias hilariantes. Tudo era fascínio e Mack
voltou a ser inundado por um intenso bem-estar.
Como acontece freqüentemente quando uma fogueira de
acampamento arde por muito tempo, a conversa passou do
humorístico para o mais pessoal. Sarah parecia ansiosa para
conhecer melhor o resto da família de Mack, especialmente Nan.
— Como ela é, Mackenzie?
Mack adorava exaltar as maravilhas de sua Nan.
— Modéstia à parte, Nan é linda por dentro e por fora. —
Sorriu encabulado e viu os dois olhando afetuosamente para ele.
Estava realmente com saudade de sua mulher. — O nome
completo dela é Nannette, mas quase todo mundo só a chama de
Nan. Tem uma tremenda reputação na comunidade médica, pelo
menos no Noroeste. É enfermeira e trabalha com pacientes
terminais de câncer. É um trabalho duro, mas ela adora. Bom,
Nan escreveu alguns textos e tem feito palestras em congressos.
— Verdade? — perguntou Sarah. — Sobre o que ela fala?
— Ela ajuda as pessoas que estão diante da morte a
pensarem no relacionamento com
Deus.
— Eu adoraria ouvir mais sobre isso — encorajou Jesse
enquanto atiçava o fogo com um graveto, fazendo-o avivar-se com
vigor renovado.
Mack hesitou. Por mais que se sentisse à vontade com
aqueles dois, não os conhecia de fato e a forma como a conversa se
aprofundara o deixava meio inquieto. Procurou responder de
maneira sucinta.
— Nan é muito melhor nisso do que eu. Acho que ela pensa
em Deus de modo diferente da maioria das pessoas. Ela até o
chama de Papai, porque se sente muito íntima dele, se é que isso
faz sentido para vocês.
— Claro que faz — exclamou Sarah, enquanto Jesse
confirmava com a cabeça. — Toda a sua família chama Deus de
Papai?
— Não — respondeu Mack rindo. — As crianças às vezes
chamam, mas eu não me sinto confortável com isso. Parece um
pouco familiar demais para mim. De qualquer modo, Nan tem um
pai maravilhoso e, por isso, acho que é mais fácil para ela.
A coisa havia escapado e Mack estremeceu por dentro
esperando que ninguém tivesse percebido; mas Jesse o olhava com
interesse.
— Seu pai não era maravilhoso? — perguntou com gentileza.
— É. — Mack fez uma pausa. — Acho que se pode dizer que
ele não era maravilhoso. Morreu quando eu era criança, de causas
naturais. — Riu, mas o som foi oco. Olhou para os dois. — Bebeu
até morrer.
— Lamentamos muito — disse Sarah afetuosamente.
— Bom — ele observou, forçando outro riso —, às vezes a
vida é dura, mas eu tenho muita coisa para agradecer.
Seguiu-se um silêncio incômodo e Mack se perguntou por que
estava falando sobre essas coisas com aqueles dois. Segundos
depois foi resgatado por um jorro de crianças que se derramaram
do trailer para o meio deles. Para alegria de Kate, ela e Emmy
haviam surpreendido Josh e Amber de mãos dadas no escuro e
queriam que todos soubessem.
Josh estava tão fascinado que nem chegou a protestar.
Quando os Madison se despediram de Mack e de seus filhos,
Sarah bateu carinhosamente no ombro do novo amigo. Depois
foram andando pela escuridão até o acampamento dos Ducette.
Mack ficou olhando-os até não conseguir mais escutar
seus sussurros e a luz oscilante da lanterna deles desaparecer.
Sorriu e virou-se para arrebanhar sua turma na direção dos sacos
de dormir.
As orações foram feitas, seguidas por beijos de boa noite e
risinhos de Kate conversando baixo com o irmão mais velho.
E, finalmente, silêncio.
Mack arrumou o que pôde usando a luz das lanternas e
decidiu deixar o resto para o dia seguinte. De qualquer modo, só
planejavam partir no início da tarde. Encheu seu último copo de
café e sentou-se, bebendo-o diante da fogueira que havia se
consumido até só restar uma massa faiscante de carvões
incandescentes. Estava sozinho, mas não solitário.
Esse não era o verso de uma música conhecida? Não tinha
certeza, mas, se conseguisse lembrar, procuraria o CD quando
chegasse em casa.
Hipnotizado pelo fogo e envolvido por seu calor, rezou,
principalmente orações de agradecimento. Tinha consciência dos
privilégios que recebera. Bênçãos provavelmente era a palavra
certa. Estava contente, descansado e em paz. Mack não sabia, mas
em menos de 24 horas suas orações mudariam. Drasticamente.
* * *
A manhã seguinte, apesar de ensolarada e quente, não
começou tão bem. Mack acordou cedo para surpreender as
crianças com um café da manhã especial, mas queimou dois dedos
quando tentava soltar as panquecas que haviam grudado na
frigideira. Reagindo à dor lancinante, derrubou o fogão, a frigideira
e a tigela de massa no chão arenoso. As crianças, acordadas pelo
barulho e pelos palavrões ditos em voz baixa, vieram ver o
que estava acontecendo. Começaram a rir quando descobriram o
que era, mas bastou um "Ei, isso não é engraçado!" de Mack para
voltarem para dentro da barraca, rindo escondidas enquanto
olhavam pelas janelas de tela.
Assim, em vez do planejado, o café da manhã se resumiu a
cereal frio com creme de leite diluído, já que o resto do leite fora
usado na massa de panqueca. Mack passou a hora seguinte
tentando arrumar o acampamento com dois dedos enfiados num
copo de água gelada. A notícia devia ter se espalhado, porque
Sarah Madison apareceu com material de primeiros socorros para
queimaduras. Minutos depois de ter seus dedos cobertos por um
líquido esbranquiçado, Mack sentiu a ardência diminuir.
Mais ou menos nessa hora, tendo terminado suas tarefas,
Josh e Kate vieram perguntar se poderiam dar um último passeio
na canoa dos Ducette, prometendo usar coletes salva-vidas. Depois
do inevitável "não" inicial e da insistência dos filhos,
Mack finalmente cedeu. Não estava muito preocupado. O
acampamento ficava pertinho do lago e eles prometeram não se
afastar da margem. Mack poderia vigiá-los enquanto continuava a
guardar as coisas.
Missy estava ocupada colorindo o livro da cachoeira
Multnomah.
Ela é linda demais, pensou Mack, olhando embevecido a filha
enquanto limpava a sujeira. A menina vestia a única roupa limpa
que lhe restara, um vestidinho vermelho de verão, com flores-docampo
bordadas, comprado em Joseph quando foram à cidade
no primeiro dia.
Cerca de 15 minutos depois, Mack levantou os olhos ao ouvir
uma voz familiar chamando do lago:
— Papai!
Era Kate. Ela e o irmão acenaram do bote. Ambos usavam os
coletes salva-vidas e Mack acenou de volta.
É estranho como um ato ou acontecimento aparentemente
insignificante pode mudar vidas inteiras. Levantando o remo para
acenar, Kate perdeu o equilíbrio e emborcou a canoa. Surgiu uma
expressão congelada de terror em seu rosto enquanto, quase em
silêncio e em câmara lenta, o barco virava. Josh se inclinou
freneticamente para tentar equilibrá-lo, mas era tarde demais e ele
desapareceu na água. Mack já corria para a beira do lago,
não pretendendo entrar, mas para estar perto quando eles
saíssem. Kate emergiu primeiro, tossindo e gritando, porém não
havia sinal de Josh. E de repente Mack viu uma erupção de água e
pernas e soube naquele momento que algo estava terrivelmente
errado.
Para seu espanto, todos os instintos que havia desenvolvido
como salva-vidas na adolescência voltaram instantaneamente. Em
questão de segundos ele caiu na água, tirando os sapatos e a
camisa. Nem se deu conta do choque gelado ao disparar na direção
da canoa virada, ignorando os soluços aterrorizados da filha. Ela
estava em segurança. Seu foco principal era Josh.
Respirando fundo, mergulhou. Apesar de toda a agitação, a
água continuava razoavelmente límpida. Encontrou Josh
rapidamente e logo descobriu a razão de seu problema. Uma
das tiras do colete salva-vidas se prendera na amarra da canoa.
Por mais que tentasse, Mack não conseguiu soltá-la e por isso fez
sinal para Josh entrar mais fundo sob a canoa, onde havia um
bolsão de ar. Mas o pobre garoto estava em pânico, tentando
livrar-se da tira que o prendia embaixo d'água sob a borda d a
canoa.
Mack veio à superfície, gritou para Kate nadar até a margem,
sugou todo o ar que pôde e mergulhou pela segunda vez. No
terceiro mergulho, sabendo que o tempo estava acabando,
percebeu que tinha duas alternativas: tentar livrar Josh do colete
ou virar a canoa. Escolheu a segunda opção. Se foram Deus e os
anjos, ou Deus e a adrenalina, ele jamais teve certeza, mas na
segunda tentativa conseguiu virar a canoa, libertando Josh da
amarra.
O colete manteve o rosto do garoto acima da água. Mack
emergiu atrás de Josh, agora frouxo e inconsciente, com sangue
escorrendo de um talho na cabeça, que a canoa acertara quando
Mack a virara de volta. Começou imediatamente a fazer respiração
boca a boca no filho, do melhor modo que podia, enquanto outras
pessoas o ajudavam a puxá-lo em direção à parte rasa.
Sem perceber os gritos ao redor, Mack se concentrou na
tarefa, com o ? borbulhando no peito. Quando os pés de Josh
tocaram terreno firme, o garoto começou a tossir e a vomitar água
e o café da manhã. Aplausos empolgados irromperam ao redor,
porém Mack não deu a mínima. Dominado pelo alívio e pela
descarga de adrenalina resultante do esforço, começou a chorar e,
de repente, Kate estava soluçando com os braços em volta de seu
pescoço, enquanto todos riam, choravam e se abraçavam.
Dentre os que haviam sido atraídos pelo barulho estavam
Jesse Madison e Emil Ducette. Em meio à confusão de gritos de
alegria e de alívio, Mack escutou a voz de Emil sussurrando:
— Desculpe... desculpe... desculpe.
A canoa era dele, poderiam ter sido seus filhos. Mack o
abraçou e disse quase gritando em seu ouvido:
— Pare com isso! Não foi culpa sua e estão todos bem.
Emil começou a soluçar, com as emoções subitamente
liberadas de uma represa de culpa e medo contidos.
Uma tragédia fora evitada. Pelo menos era o que Mack
pensava.

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