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quarta-feira, 13 de março de 2013

A Cabana- Capítulo 5 – Adivinhem quem vem para jantar

Rotineiramente desqualificamos testemunhos e
exigimos comprovação. Isto é, estamos tão
convencidos da justeza de nosso julgamento que
invalidamos provas que não se ajustem a ele.
Nada que mereça ser chamado de verdade pode
ser alcançado por esses meios.
Marilynne Robinson, The Death of Adam

Há ocasiões em que optamos por acreditar em algo que
normalmente seria considerado absolutamente irracional. Isso não
significa que seja mesmo irracional, mas certamente não é
racional. Talvez exista a supra-racionalidade: a razão além das
definições normais dos fatos ou da lógica baseada em dados. Algo
que só faz sentido se você puder ver uma imagem maior da
realidade. Talvez seja aí que a fé se encaixe.
Mack não tinha certeza de um monte de coisas, mas em
algum momento em seu coração e em sua mente, nos dias que se
seguiram à nevasca, ele se convenceu de que havia três
explicações plausíveis para o bilhete. Podia ser de Deus, por mais
absurdo que isso parecesse, podia ser uma piada cruel ou algo
mais sinistro vindo do assassino de Missy. Independentemente de
qualquer coisa, o bilhete dominava seus pensamentos dia e noite.
Secretamente começou a fazer planos para viajar até a
cabana no fim de semana seguinte. A princípio não falou com
ninguém, nem mesmo com Nan, achando que uma conversa assim
só traria mais dor. "Estou mantendo segredo por causa de Nan",
dizia a si mesmo. Além disso, falar do bilhete seria admitir que
guardara segredos. Algumas vezes a honestidade pode ser
incrivelmente complicada.
Decidido a empreender a viagem, Mack começou a pensar em
modos de afastar a família de casa durante o fim de semana sem
levantar suspeitas. Felizmente foi a própria Nan quem ofereceu a
solução. Ela estivera pensando em visitar a família da irmã nas
ilhas San Juan, no litoral de Washington. Seu cunhado era
psicólogo infantil e Nan achava que poderia ser útil conversar com
ele sobre o comportamento cada vez mais fechado de Kate. Quando
ela levantou a possibilidade da viagem, Mack reagiu quase
ansioso demais.
— Claro que vocês vão — ele afirmou imediatamente. Não era
a resposta que ela havia previsto e Nan lhe lançou um olhar
interrogativo.
— Quero dizer — consertou ele, sem jeito —, é uma idéia
fantástica.
Vou sentir falta de vocês, claro, mas acho que posso
sobreviver sozinho uns dois dias e, de qualquer modo, tenho um
monte de coisas para fazer.
Ela deu de ombros, talvez grata porque o caminho para
a viagem tivesse se aberto com tanta facilidade.
Bastou um rápido telefonema à irmã de Nan e a viagem foi
acertada. Logo a casa virou um turbilhão de atividades. Josh e
Kate ficaram deliciados com a perspectiva de visitar os primos e
compraram fácil a idéia.
Disfarçadamente, Mack telefonou para seu amigo Willie
pedindo seu jipe emprestado.
O pedido estranho, como era de se prever, provocou um
tiroteio de perguntas que Mack tentou responder do modo mais
evasivo possível. Terminou dizendo que explicaria tudo quando
Willie aparecesse para trocar os veículos.
No fim da tarde de quinta-feira, depois de despedir-se de Nan,
Kate e Josh, Mack começou a preparar-se para a longa viagem ao
Nordeste do Oregon — o local de seus pesadelos. Sem dúvida havia
a possibilidade de ter se transformado num idiota completo ou de
estar sendo vítima de uma brincadeira de mau gosto, mas nesse
caso ficaria livre para simplesmente ir embora. Uma batida na
porta arrancou-o de sua concentração e ele viu que era Willie.
— Estou aqui na cozinha — gritou.
Um instante depois Willie apontou a cabeça pela porta do
corredor.
— Bom, eu trouxe o jipe e o tanque está cheio, mas só vou
entregar a chave quando você contar exatamente o que está
acontecendo.
Mack continuou enfiando coisas em dois sacos de viagem.
Sabia que não adiantava mentir para o amigo.
— Vou voltar à cabana, Willie.
— Bom, eu já tinha imaginado. O que quero saber é por que
você pretende voltar lá. Não sei se o meu velho jipe vai dar conta
do recado, mas, como garantia, coloquei umas correntes atrás para
o caso de precisarmos.
Sem olhar para ele, Mack foi até o escritório, tirou a tampa de
uma lata pequena e pegou o bilhete. Voltando à cozinha, entregouo
ao amigo. Willie desdobrou o papel e leu em silêncio.
— Nossa, que tipo de maluco escreveria uma coisa assim? E
quem é esse tal de Papai?
— Bom, você sabe, Papai é o nome que Nan usa para Deus.
Mack pegou o bilhete de volta e o enfiou no bolso da camisa.
— Espera, você está achando mesmo que isso veio de Deus?
Willie, não sei o que pensar disso. Quer dizer, a princípio
achei que era apenas uma brincadeira de mau gosto e fiquei com
raiva. Sei que parece loucura, mas de algum modo me sinto
estranhamente tentado a descobrir. Tenho de ir, Willie, ou isso vai
me deixar maluco para sempre.
— Já pensou na possibilidade de ser o assassino? E se ele
estiver atraindo você para lá por algum motivo?
— Claro que pensei. Parte de mim não ficaria desapontada
com isso. Tenho contas a acertar com ele — disse sério e fez uma
pausa. — Mas também não faz muito sentido. Não acho que o
assassino saiba que "Papai" é um termo usado em nossa família.
Willie ficou perplexo e Mack prosseguiu:
— E nenhum amigo nosso mandaria um bilhete desses.
Estou pensando que só Deus faria isso... talvez.
— Mas Deus não faz coisas assim. Pelo menos nunca ouvi
falar que ele tivesse mandado um bilhete a alguém. E por que ele
desejaria que você retornasse à cabana? Não consigo pensar num
lugar pior...
Pairou um silêncio incômodo entre os dois. Mack falou:
— Não sei, Willie. Acho que parte de mim gostaria de
acreditar que Deus se importa o suficiente comigo para me mandar
um bilhete. Continuo muito confuso, mesmo depois de tanto
tempo. Simplesmente não sei o que pensar, e a coisa não melhora.
Sinto que estou perdendo Kate e isso me mata. Talvez o que
aconteceu com Missy seja uma espécie de castigo de Deus pelo que
fiz com meu pai. Realmente não sei.
Mack olhou o rosto de seu melhor amigo, mais do que um
irmão.
— Só sei que preciso voltar.
O silêncio se prolongou entre os dois até que Willie falasse de
novo.
— Então, quando partimos?
Mack ficou tocado com a disposição do amigo.
— Obrigado, meu chapa, mas realmente preciso fazer isso
sozinho.
— Imaginei que você diria isso — respondeu Willie, virando-se
e saindo do cômodo.
Retornou alguns instantes depois com uma pistola e uma
caixa de balas.
— Achei que não conseguiria convencê-lo a deixar de ir e
pensei que poderia precisar disso. Acho que você sabe usar.
Mack olhou a arma. Sabia que Willie estava tentando ajudálo.
Willie, não posso. Faz 30 anos que toquei pela última vez
numa arma e não pretendo fazer isso agora. Se aprendi uma coisa
na vida, foi que usar a violência para resolver um problema sempre
cria um problema ainda maior.
— Mas e se for o assassino de Missy? E se ele estiver
esperando lá em cima? O que você vai fazer?
Mack deu de ombros.
— Honestamente não sei, Willie. Vou correr o risco, acho.
— Mas você vai estar indefeso. Não dá para saber o que ele
tem em mente. Leve, Mack.
Willie empurrou a pistola e as balas na direção dele.
— Você não precisa usar.
Mack olhou a arma e depois de pensar um pouco estendeu
lentamente a mão para ela e as balas, colocando-as com cuidado
no bolso.
— Certo, só para garantir.
Em seguida pegou parte do equipamento e, com os
braços carregados, saiu na direção do jipe. Willie levou a grande
sacola de lona que restava.
— Nossa, Mack, se você acha que Deus vai estar lá em cima,
para que tudo isso?
Mack lhe deu um sorriso carregado de tristeza.
— Só pensei em cobrir as várias opções. Você sabe, estar
preparado para o que acontecer...
Quando chegaram no jipe, Willie entregou as chaves a Mack.
— E o que é que Nan acha disso? — perguntou.
Nan e as crianças foram visitar a irmã dela e... eu não
contei — confessou Mack.
Willie ficou obviamente surpreso.
— O quê!? Você nunca guarda segredos de sua mulher. Não
acredito que tenha mentido para ela!
Mack ignorou a explosão do amigo, voltou à casa e entrou no
escritório. Ali encontrou as chaves de reserva de seu carro e da
casa e, hesitando apenas um instante, pegou a pequena lata. Willie
foi atrás dele.
— Como você acha que ele é? — perguntou rindo.
— Quem?
— Deus, claro. Como você acha que ele é?
Mack pensou um instante.
— Não sei. Talvez ele tenha uma luz muito forte ou apareça
no meio de uma sarça ardente. Sempre o visualizei assim como um
avô, com uma barba longa flutuando.
Deu de ombros, entregou as chaves de seu carro a Willie e os
dois trocaram um abraço rápido.
— Bom, se ele aparecer, dê lembranças minhas — disse Willie
com um sorriso afetuoso. — Estou preocupado com você, meu
chapa. Gostaria de ir junto. Vou fazer uma ou duas orações por
você.
— Obrigado, Willie. Você é um amigo e tanto.
Acenou enquanto Willie dava marcha a ré pela entrada de
veículos. Mack sabia que ele manteria a promessa.
Provavelmente ele iria precisar de todas as orações que
conseguisse.
Ficou olhando até Willie virar a esquina e sumir, depois tirou
o bilhete do bolso da camisa, leu mais uma vez e colocou-o na lata,
que depositou no banco do carona em meio a outros
equipamentos. Trancando as portas do jipe, voltou para casa e
para uma noite sem sonhos.
* * *
Bem antes do amanhecer da sexta-feira, Mack já estava fora
da cidade. Nan havia telefonado na noite anterior dizendo que
chegaram em segurança e que voltaria a ligar no domingo. Até lá
provavelmente ele já teria voltado.
Refez o mesmo caminho que haviam tomado três anos e meio
antes, mas passou pela cachoeira Multnomah sem olhar. No longo
trecho subindo o desfiladeiro sentiu o pânico se esgueirando e
invadindo sua consciência. Tentara não pensar no que estava
fazendo e simplesmente ir colocando um pé na frente do outro,
mas os sentimentos e temores represados começaram a surgir.
Seus olhos ficaram sombrios e as mãos apertavam com força o
volante enquanto ele lutava contra a tentação de voltar para casa.
Sabia que estava indo direto para o centro de sua dor, o vórtice da
Grande Tristeza que havia minado sua alegria de viver.
Finalmente pegou a auto-estrada para Joseph. Pensou em
procurar Tommy, mas decidiu não fazer isso. Quanto menos
pessoas pensassem que ele era um lunático desvairado, melhor.
O trânsito era tranqüilo e as estradas estavam notavelmente
limpas e secas para essa época do ano, mas parecia que quanto
mais avançava mais lentamente viajava, como se de algum modo a
cabana repelisse sua aproximação. O jipe atravessou a faixa de
neve enquanto ele subia os últimos 3 quilômetros até a trilha que
iria descer para a cabana. Era apenas o início da tarde quando
Mack finalmente parou e estacionou no começo da trilha
praticamente invisível.
Ficou ali sentado por cerca de cinco minutos, repreendendose
por ser tão idiota. A cada quilômetro percorrido desde Joseph as
lembranças voltavam com uma clareza que o empurrava para trás.
Mas a compulsão interna de prosseguir era irresistível.
Levantou-se, olhou o caminho e decidiu deixar tudo no carro
e descer a pé o trecho de cerca de um quilômetro e meio até o lago.
Pelo menos não teria de carregar nada morro acima quando
retornasse para ir embora, o que esperava que acontecesse logo.
Estava suficientemente frio para sua respiração pairar no ar
em volta dele, e parecia que ia nevar. A dor que estivera crescendo
no estômago finalmente o empurrou para o pânico. Depois de
apenas cinco passos ele parou e teve ânsias de vômito tão fortes
que o deixaram de joelhos.
— Por favor, me ajude! — gemeu. Em seguida levantou-se
com as pernas trêmulas e virou-se. Abriu a porta do carona e
enfiou a mão, remexendo até sentir a pequena lata.
Abriu a tampa e encontrou o que estava procurando: sua foto
predileta de Missy, que tirou junto com o bilhete. Recolocou a
tampa e deixou a lata no banco. Parou um momento olhando o
porta-luvas. Por fim abriu-o e pegou a arma de Willie, verificando
que estava carregada e com a trava de segurança acionada. De pé,
fechou a porta, enfiou a mão embaixo do casaco e pôs a arma no
cinto, às costas. Virou-se e encarou o caminho de novo, olhando
uma última vez a foto de Missy antes de enfiá-la no bolso da
camisa junto com o bilhete. Se o encontrassem morto, pelo menos
saberiam qual tinha sido seu último pensamento.
A trilha era traiçoeira; as pedras, geladas e escorregadias.
Cada passo exigia concentração enquanto ele descia para a floresta
cada vez mais densa. O silêncio era fantasmagórico. Os únicos
sons que podia ouvir eram os de seus passos esmagando a neve e
o da sua respiração pesada. Mack começou a sentir que estava
sendo observado e uma vez chegou a girar rapidamente para ver se
havia alguém ali. Por mais que quisesse dar a volta e correr para o
jipe, seus pés pareciam ter vontade própria, determinados
a continuar pelo caminho e entrar mais fundo na floresta mal
iluminada e cada vez mais fechada.
De repente algo se mexeu ali perto. Assustado, ele se
imobilizou em silêncio e alerta.
Com o coração martelando nos ouvidos e a boca subitamente
seca, levou devagar a mão às costas e tirou a pistola do cinto.
Depois de soltar a trava, olhou fixamente para o mato baixo e
escuro, tentando ver ou ouvir algo que pudesse explicar o barulho
e diminuir o jorro de adrenalina. Mas o que quer que tivesse se
mexido havia parado agora. Estaria esperando por ele? Só para
garantir, ficou imóvel por alguns minutos antes de começar
de novo a descer lentamente a trilha, tentando ser o mais
silencioso possível.
A floresta parecia se fechar ao seu redor e ele começou a se
perguntar seriamente se havia tomado o caminho errado. Com o
canto do olho viu movimento outra vez e se
agachou instantaneamente, espiando entre os galhos baixos de
uma árvore próxima. Algo fantasmagórico, como uma sombra,
entrou nos arbustos. Ou seria imaginação? Esperou de novo, sem
mexer um músculo. Seria Deus? Duvidava. Talvez um animal.
Então o pensamento que estivera evitando: "E se for algo pior? E se
ele tivesse sido atraído aqui para cima? Mas para quê?"
Levantando-se devagar do esconderijo, com a arma ainda na
mão, deu um passo adiante, e foi quando de repente o arbusto
atrás dele pareceu explodir. Mack girou, apavorado e pronto para
lutar pela vida, mas, antes que pudesse apertar o gatilho,
reconheceu um texugo correndo de volta pela trilha. Exalou aos
poucos o ar que estivera prendendo, baixou a arma e balançou a
cabeça. Mack, o corajoso, parecia um menino apavorado
na floresta. Depois de travar a arma de novo, guardou-a. "Alguém
poderia se machucar", pensou com um suspiro de alívio.
Respirando fundo outra vez e soltando o ar lentamente,
acalmou-se. Decidiu que estava farto de sentir medo e continuou a
descer o caminho, tentando parecer mais confiante do que se
sentia. Esperava não ter vindo tão longe à toa. Se Deus
realmente aparecesse, Mack estava mais do que pronto para dizerlhe
umas tantas verdades.
Algumas voltas depois, saiu da floresta para uma clareira. Do
outro lado, abaixo da encosta, viu-a de novo: a cabana. Ficou
parado olhando-a, com o estômago transformado numa bola em
movimento e tumulto. Na superfície nada parecia ter mudado,
afora o inverno ter despido as árvores e o manto branco de neve
que cobria o lugar. A cabana parecia morta e vazia, mas de repente
transformou-se num monstro de rosto maligno, retorcido numa
careta demoníaca, olhando-o diretamente e desafiando-o a se
aproximar. Ignorando o pânico crescente, Mack desceu com
decisão os últimos 100 metros e subiu os degraus da varanda.
As lembranças e o horror da última vez em que estivera ali
voltaram num rompante e ele hesitou antes de empurrar a porta.
— Olá? — chamou, não muito alto. Pigarreando, chamou de
novo, dessa vez mais alto. — Olá? Tem alguém aí? — Sua voz
ecoou no vazio. Sentindo-se mais seguro, entrou na sala e parou.
Enquanto seus olhos se ajustavam à semi-escuridão,
começou a perceber os detalhes da sala com a luz da tarde se
filtrando pelas janelas quebradas. Reconheceu as cadeiras velhas e
a mesa. Não conseguiu evitar que seus olhos fossem atraídos para
o único local que não suportaria olhar. Mesmo depois de alguns
anos, a mancha de sangue desbotada ainda era claramente visível
na madeira perto da lareira, onde haviam encontrado o vestido de
Missy.
— Desculpe, querida. — Lágrimas começaram a se juntar nos
seus olhos.
E finalmente seu coração explodiu como uma tromba-d'água,
soltando a raiva contida e deixando-a jorrar pelos cânions
rochosos de suas emoções. Virando os olhos para o céu, começou
a gritar suas perguntas angustiadas.
— Por quê? Por que você deixou que isso acontecesse? Por
que me trouxe aqui? Por que logo aqui? Não bastou matar minha
filhinha? Tinha de zombar de mim também?
Numa fúria cega, Mack pegou a cadeira mais próxima e
jogou-a contra a janela, despedaçando-a. Com uma das pernas da
cadeira, começou a destruir tudo que podia.
Grunhidos e gemidos de desespero e fúria irrompiam de seus
lábios enquanto ele soltava a fúria naquele lugar terrível. — Odeio
você! — Num frenesi, liberou a raiva até ficar exaurido.
Desesperado e derrotado, Mack se deixou cair no chão, perto
da mancha de sangue.
Tocou-a com cuidado. Era tudo o que restava de sua Missy.
Deitado junto dela, os dedos acompanharam com ternura as
bordas descoloridas e ele sussurrou baixinho:
Missy, desculpe. Desculpe se não pude proteger você.
Desculpe se não pude encontrar você.
Mesmo em sua exaustão, a raiva fervilhou e de novo ele
apontou contra o Deus indiferente que ele imaginava encontrar-se
em algum lugar acima do teto da cabana.
— Deus, você nem deixou que a encontrássemos e a
enterrássemos. Seria pedir demais?
Enquanto a mistura de emoções ia e vinha, com a raiva
dando lugar à dor, uma nova onda de tristeza começou a se
misturar com sua confusão.
— Então, onde está você? Achei que queria se encontrar
comigo. Bom, estou aqui, Deus. E você? Não está em lugar
nenhum! Nunca esteve quando precisei, nem quando eu era
pequeno, nem quando perdi Missy. Nem agora! Tremendo "Papai"
você é! — cuspiu as palavras.
Mack ficou ali sentado em silêncio, com o vazio do lugar
invadindo sua alma. Todas as perguntas sem resposta e as
acusações dolorosas se acomodaram no chão ao lado dele e
lentamente se transformaram num poço de desolação. A Grande
Tristeza se apertou ao redor e ele quase gostou da sensação
esmagadora. Esta dor ele conhecia. Estava familiarizado com ela,
era quase uma amiga.
Mack podia sentir a arma na cintura, um frio convidativo
contra a pele. Pegou-a, sem saber direito o que fazer. Ah, parar de
se preocupar, parar de sentir a dor, nunca mais sentir nada.
Suicídio? No momento a opção era quase atraente. "Seria tão fácil",
pensou.
"Chega de lágrimas, chega de dor..." Quase podia ver um
abismo preto abrindo-se no chão atrás da arma para a qual estava
olhando, uma escuridão que sugava os últimos vestígios de
esperança do coração. Matar-se seria um modo de contra-atacar
Deus, se Deus ao menos existisse.
As nuvens se abriram do lado de fora e de repente um raio de
sol derramou-se na sala, rasgando o centro de seu desespero.
Mas... e Nan? E Josh, Kate, Tyler e Jon? Por mais que desejasse
interromper a dor, sabia que não poderia aumentar o sofrimento
deles.
Uma brisa fria passou por seu rosto e parte de Mack quis
simplesmente se deitar e congelar até a morte, de tão exausto.
Encostou-se na parede e esfregou os olhos cansados. Deixou-os
fecharem-se enquanto murmurava:
— Eu te amo, Missy. Sinto saudades demais. — Logo
penetrou sem esforço num sono pesado.
Provavelmente haviam se passado apenas alguns minutos
quando Mack despertou com um solavanco. Surpreso por ter
cochilado, levantou-se depressa. Enfiando a arma de volta na
cintura e a raiva na parte mais funda da alma, foi em direção à
porta.
— Isso é ridículo! Sou tão idiota! E pensar que eu esperava
que Deus poderia se importar a ponto de me mandar um bilhete!
Olhou para o espaço aberto.
— Estou cheio, Deus — sussurrou. — Não posso mais. Estou
cansado de tentar encontrá-lo em tudo isso. — E saiu pela porta.
Decidiu que esta era a última vez que procuraria Deus.
Se Deus o quisesse, teria de vir encontrá-lo.
Enfiou a mão no bolso, pegou o bilhete que havia encontrado
na caixa de correio e picou-o em pedacinhos, deixando-os escorrer
lentamente entre os dedos para serem levados pelo vento frio que
havia aumentado. Com passos pesados e o coração mais pesado
ainda, começou a caminhar de volta para o jipe.
* * *
Mal havia caminhado uns 15 metros pela trilha quando
sentiu um jorro súbito de ar quente alcançá-lo por trás. O canto de
um pássaro rompeu o silêncio gelado. O caminho diante dele
perdeu rapidamente o verniz de gelo e neve, como se alguém
estivesse usando um secador de cabelos. Mack parou e ficou
olhando, enquanto ao redor a cobertura branca se dissolvia e era
substituída por uma vegetação radiante. Três semanas de
primavera se desdobraram diante dele em 30 segundos. Esfregou
os olhos e firmou-se naquele redemoinho. Até mesmo a neve fina
que havia começado a cair se transformara em minúsculas flores
descendo preguiçosamente para o chão.
O que ele estava vendo, claro, não era possível. Os montes de
neve haviam desaparecido e flores silvestres de verão começaram a
colorir as bordas da trilha e a surgir na floresta até onde a vista
alcançava. Tordos, esquilos e tâmias atravessavam de vez
em quando o caminho, alguns parando para sentar-se e olhá-lo
por um momento antes de mergulhar de novo no mato baixo.
Como se isso não bastasse, o perfume das flores começou a encher
o ar, não somente o aroma fugaz de flores silvestres da
montanha, mas a intensidade de rosas, orquídeas e outras
fragrâncias exóticas encontradas em climas mais tropicais.
O terror dominou Mack, como se ele tivesse aberto a Caixa de
Pandora e fosse varrido para o centro da loucura, perdendo-se
para sempre. Inseguro, girou com cuidado, tentando se agarrar a
algum sentimento de sanidade.
Ficou pasmo. Tudo mudara. A cabana dilapidada fora
substituída por um chalé sólido e lindamente construído com
troncos descascados à mão, cada um deles trabalhado para um
encaixe perfeito.
Em vez dos arbustos escuros e agrestes de macegas, urzes e
espinheiros, tudo o que Mack via agora era perfeito como num
cartão-postal. A fumaça subia preguiçosa da chaminé para o céu
do fim de tarde, sinal de atividade dentro da cabana. Um caminho
fora construído ao redor da varanda da frente, limitado por uma
pequena cerca de ripas brancas.
O som de risos vinha de perto — talvez de dentro, mas não
dava para ter certeza.
Talvez fosse assim a experiência de um surto psicótico total.
— Estou pirando de vez — sussurrou Mack. — Isso não pode
estar acontecendo. Não é real.
Era um lugar que Mack só poderia ter imaginado em seus
melhores sonhos, e isso tornava a coisa ainda mais suspeita. A
visão era maravilhosa, os perfumes inebriantes, e seus pés, como
se tivessem vontade própria, levaram-no de volta descendo o
caminho até a varanda da frente. Flores brotavam em toda parte e
a mistura de fragrâncias florais provocou lembranças de infância,
esquecidas havia muito. Ele sempre ouvira dizer que o olfato era o
melhor elo com o passado, o sentido mais forte para redescobrir
histórias antigas.
Na varanda, parou de novo. Vozes vinham muito claramente
de dentro. Mack rejeitou o impulso súbito de sair correndo, como
se fosse algum garoto que tivesse jogado a bola no jardim de um
vizinho. "Quem estaria lá dentro?" Fechou os olhos e balançou a
cabeça para ver se conseguia apagar a alucinação e restaurar a
realidade. Mas, quando os abriu, tudo continuava ali. Estendeu a
mão, hesitando, e tocou o corrimão de madeira.
Certamente parecia real.
Agora enfrentava outro dilema. O que você faz quando chega
à porta de uma casa — ou de um chalé, neste caso — onde Deus
pode estar? Deve bater? Certamente Deus devia saber que Mack
estava ali. Talvez ele simplesmente devesse entrar e se apresentar,
mas isso parecia igualmente absurdo. E como se dirigir a Deus?
Deveria chamá-lo de Pai, de Todo- Poderoso ou talvez de Senhor
Deus? Seria melhor ajoelhar-se e cair em adoração?
Enquanto tentava estabelecer algum equilíbrio interno, a
raiva voltou a emergir.
Energizado pela ira, Mack foi até a porta. Decidiu bater com
força para ver o que acontecia, mas, no momento em que levantou
o punho, a porta se escancarou e diante dele apareceu uma negra
enorme e sorridente.
Mack pulou para trás por instinto, mas foi lento demais. Com
uma velocidade surpreendente para o seu tamanho, a mulher
atravessou a distância entre os dois e o engolfou nos braços,
levantando-o do chão e girando-o como se ele fosse uma
criança pequena. E o tempo todo gritava o seu nome, Mackenzie
Allen Phillips, com o ardor de alguém que reencontrasse um
parente amado há muito perdido. Por fim colocou-o de volta no
chão e, com as mãos nos ombros dele, empurrou-o para trás, como
se quisesse vê-lo bem.
— Mack, olha só para você! — ela praticamente explodiu. —
Aí está, e tão crescido! Eu estava ansiosa para vê-lo cara a cara. É
tão maravilhoso tê-lo aqui conosco! Minha nossa, como eu amo
você! — E, ao dizer isso, o abraçou de novo.
Mack ficou sem fala. Em poucos segundos aquela mulher
havia rompido praticamente todas as convenções sociais atrás das
quais ele se entrincheirava com tanta segurança.
Mas algo no seu olhar e na maneira como ela dizia o seu
nome o deixou deliciado, mesmo não tendo a menor idéia de quem
se tratava.
De repente foi dominado pelo perfume que exalava da mulher,
e isso o sacudiu. Era o cheiro de flores, com sugestões de gardênia
e jasmim, inconfundivelmente o perfume de sua mãe que ele
mantivera guardado em um vidro na latinha. O cheiro que jorrava
e a lembrança que vinha junto o fizeram cambalear. Podia sentir o
calor das lágrimas em seus olhos, como se estivessem batendo à
porta de seu coração. A mulher percebeu.
— Tudo bem, querido, pode deixar que elas saiam... Sei que
você foi magoado e que está com raiva e confuso. Então vá em
frente e ponha para fora. É bom para a alma deixar que as águas
rolem de vez em quando, as águas que curam.
Mack não podia impedir que as lágrimas enchessem seus
olhos, mas não estava preparado para soltá-las, ainda não, não
com essa mulher. Reuniu todas as forças possíveis para evitar cair
de volta no buraco negro das emoções. Enquanto isso, a mulher
ficou ali com os braços estendidos, como se fossem os da sua mãe.
Ele sentiu a presença do amor. Era quente, convidativo, derretia
tudo.
— Não está pronto? — reagiu ela. — Tudo bem, vamos fazer
as coisas no seu devido tempo. Venha comigo. Posso pegar seu
casaco? E essa arma? Você não precisa mesmo dela, certo? Não
queremos que alguém se machuque, não é?
Mack não sabia direito o que fazer ou dizer. Quem era ela?
Enraizado no mesmo lugar, lenta e mecanicamente tirou o casaco.
A negra enorme pegou o casaco e ele lhe entregou a arma,
que ela segurou com a ponta de dois dedos, como se aquilo
estivesse contaminado. No momento em que ela se virou para
entrar no chalé, uma mulher pequena, claramente asiática,
emergiu de trás da negra.
— Aqui, deixe-me pegar isso — cantarolou ela. Obviamente
não queria falar do casaco nem da arma e sim de outra coisa, e
estava na frente dele num piscar de olhos. Mack se enrijeceu ao
sentir algo passar suavemente em sua face. Sem se mexer, olhou
para baixo e viu que a mulher estava usando um frágil frasco de
cristal e um pequeno pincel, como os que vira Nan e Kate usar
para maquiagem, e que gentilmente removia algo de seu rosto.
Antes que ele pudesse perguntar, ela sorriu e sussurrou:
— Mackenzie, todos temos coisas que valorizamos a ponto de
colecionar, não é? — A pequena lata relampejou na mente dele. —
Eu coleciono lágrimas.
Enquanto a mulher recuava, Mack se pegou franzindo os
olhos na direção dela, como se isso lhe permitisse enxergar melhor.
Mas, estranhamente, ainda tinha dificuldade para focalizá-la. Ela
parecia quase tremeluzir na luz e seu cabelo voava em todas as
direções, apesar de não haver nenhuma brisa. Era quase mais fácil
vê-la com o canto do olho do que fixando-a diretamente.
Então olhou para além dela e notou que uma terceira pessoa
havia saído do chalé. Desta vez era um homem. Parecia ser do
Oriente Médio e se vestia como um operário, com cinto de
ferramentas e luvas. Estava de pé, tranqüilamente encostado no
portal e com os braços cruzados, usando jeans cobertos de
serragem e uma camisa xadrez com mangas enroladas acima dos
cotovelos, revelando antebraços musculosos. Suas feições
eram bastante agradáveis, mas ele não era particularmente bonito
— não se destacaria numa multidão. Mas seus olhos e o sorriso
iluminavam o rosto e Mack achou difícil desviar o olhar. Mack
recuou de novo, sentindo-se um tanto esmagado.
— Há mais de vocês? — perguntou meio rouco.
Os três se entreolharam e riram. Mack não conseguiu evitar
um sorriso.
— Não, Mackenzie — riu a negra. — Somos tudo que você
tem e, acredite, é mais do que o bastante.
Mack tentou olhar de novo para a mulher asiática. Pelo que
podia ver, ela talvez fosse do Norte da China, ou até mesmo de
etnia mongólica. Era difícil dizer, porque seus olhos precisavam se
esforçar para enxergá-la. Pelas roupas, Mack presumiu que
fosse jardineira ou que cuidasse da horta. Tinha luvas dobradas no
cinto, não como as de couro do homem, mas leves, de pano e
borracha, como as que o próprio Mack usava para trabalhar no
quintal de casa. Vestia jeans simples com desenhos ornamentais
nas barras — joelhos cobertos da terra onde estivera ajoelhada — e
uma blusa muito colorida com manchas de amarelo, vermelho e
azul. Mack tinha uma impressão de tudo isso, porque ela parecia
entrar e sair de seu campo de visão.
Então o homem se aproximou, tocou o ombro de Mack,
beijou-o nas faces e o abraçou com força. Mack soube
instantaneamente que gostava dele. Depois o homem recuou e
a mulher asiática aproximou-se de novo, segurando seu rosto com
as duas mãos. Gradual e intencionalmente, ela aproximou o seu
rosto do dele e olhou no fundo de seus olhos.
Mack achou que quase podia ver através dela. Então a
mulher sorriu e seu perfume pareceu envolvê-lo e tirar um peso
enorme de seus ombros.
De repente Mack sentiu-se mais leve do que o ar, quase como
se não tocasse mais o chão. Ela estava abraçando-o sem abraçá-lo,
ou sem mesmo tocá-lo. Só quando ela recuou, o que provavelmente
aconteceu apenas alguns segundos depois, ele percebeu que ainda
estava de pé e que seus pés continuavam tocando o piso da
varanda.
— Ah, não se incomode — riu a negra enorme. — Ela causa
esse efeito em todo mundo.
— Gosto disso — ele murmurou e os três irromperam em
mais risos. Agora Mack se pegou rindo com eles, sem saber
exatamente por que e não se importando com isso.
Quando finalmente parou de rir, a mulher enorme passou o
braço por seus ombros, puxou-o e disse:
— Nós sabemos quem você é, mas acho que devemos nos
apresentar. Eu — ela balançou as mãos com um floreio — sou a
governanta e cozinheira. Pode me chamar de Elousia.
— Elousia? — perguntou Mack, sem compreender.
— Certo, você não precisa me chamar de Elousia. É só um
nome de que eu gosto e que tem um significado particular para
mim. Então — ela cruzou os braços e pôs a mão sob o queixo,
como se pensasse com intensidade especial — pode me chamar do
mesmo modo como Nan me chama.
— O quê? Você não quer dizer... — Agora Mack ficou surpreso
e mais confuso ainda.
Sem dúvida aquela não era o Papai que havia mandado o
bilhete! — É... quer dizer, "Papai"?
— É — respondeu ela e sorriu, esperando que ele falasse,
mas Mack ficou quieto.
O homem, que parecia ter trinta e poucos anos e era um
pouco mais baixo do que Mack, interrompeu:
— Tento manter as coisas consertadas por aqui. Mas gosto de
trabalhar com as mãos, se bem que, como essas duas vão lhe
dizer, sinto prazer em cozinhar e cuidar do jardim.
— Você parece ser do Oriente Médio, talvez seja árabe? —
perguntou Mack.
— Na verdade, sou irmão de criação daquela grande família.
Sou hebreu; para ser exato, da casa de Judá.
— Então... — De repente Mack ficou abalado com a própria
percepção. — Então você é...
— Jesus? Sou. E pode me chamar assim, se quiser. Afinal de
contas, esse se tornou o meu nome comum. Minha mãe me
chamava de Yeshua, mas também posso ser conhecido como
Joshua ou até mesmo Jessé.
Mack ficou perplexo e mudo. O que ele estava vendo e
ouvindo parecia completamente impossível! De repente sentiu que
ia desmaiar. A emoção o varria, enquanto sua mente tentava em
desespero acompanhar todas as informações. Nesse momento a
asiática chegou mais perto e desviou sua atenção.
— E eu sou Sarayu — disse ela inclinando a cabeça numa
ligeira reverência e sorrindo. — Guardiã dos jardins, dentre outras
coisas.
Pensamentos se embolavam enquanto Mack lutava para ter
alguma clareza. Será que alguma daquelas pessoas era Deus? E se
fossem alucinações? Ou será que Deus viria mais tarde? Já que
eram três, talvez aquilo fosse uma espécie de Trindade. Mas
duas mulheres e um homem? E nenhum deles era branco? Mas
por que ele havia presumido que Deus seria branco? Sabia que sua
mente estava divagando, por isso concentrou-se na pergunta que
mais queria ver respondida.
— Então qual de vocês é Deus?
— Eu — responderam os três em uníssono. Mack olhou de
um para o outro e, mesmo sem entender nada, de algum modo
acreditou.

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