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quarta-feira, 13 de março de 2013

A Cabana- Capítulo 6 – Aula de vôo

...não importa qual seja o poder de Deus, o
primeiro aspecto de Deus jamais é o do Senhor
absoluto, do Todo-Poderoso. Ê o do Deus que se
coloca no nosso nível humano e se limita.
— Jacques Ellul, Anarchy and Christianity

— Mackenzie, não fique aí parado de boca aberta — disse a
negra enorme enquanto se virava e seguia pela varanda, falando o
tempo todo. — Venha conversar comigo enquanto preparo a janta.
Ou, se não quiser, faça o que desejar. Atrás do chalé, perto do
abrigo de barcos, você vai encontrar uma vara de pesca que pode
usar para pegar umas trutas. Ela parou junto à porta para dar um
beijo em Jesus.
— Lembre apenas — e virou-se para olhar Mack — que você
tem de limpar o que pegar. — Depois, com um sorriso rápido,
desapareceu no chalé, carregando o casaco de inverno de Mack e
segurando a arma pelos dois dedos, com o braço estendido.
Mack ficou parado, de boca aberta e com uma expressão de
perplexidade grudada no rosto.
Mal notou quando Jesus passou o braço por seu ombro.
Sarayu parecia ter simplesmente evaporado.
— Ela não é fantástica? — exclamou Jesus, rindo para Mack.
Mack o encarou, balançando a cabeça.
— Estou ficando maluco? Devo acreditar que Deus é uma
negra gorda com um senso de humor questionável?
Jesus riu.
— Ela é uma piada! Adora surpresas e tem uma noção de
tempo sempre perfeita.
— Verdade? — disse Mack, ainda balançando a cabeça e sem
saber se realmente acreditava. — Então o que devo fazer agora?
— Você não deve fazer nada. Está livre para o que quiser. —
Jesus fez uma pausa e continuou, dando algumas sugestões: —
Estou trabalhando num projeto em madeira no barracão e Sarayu
está no jardim. Você pode ir pescar, andar de canoa ou entrar
e conversar com Papai.
— Bem, acho que me sinto obrigado a entrar e falar com ele...
isto é, com ela.
— Ah! — Agora Jesus estava sério. — Não se sinta obrigado.
Vá se for isso o que você quer fazer.
Mack pensou um momento e decidiu que entrar no chalé era
o que realmente desejava. Agradeceu a Jesus, que, sorrindo, foi
para a sua oficina. Mack atravessou a varanda e chegou à porta.
Depois de olhar rapidamente em volta, abriu-a. Enfiou a cabeça
para dentro, hesitou e decidiu mergulhar.
— Deus? — chamou timidamente, sentindo-se bastante
idiota.
— Estou na cozinha, Mackenzie. Basta seguir minha voz.
Ele entrou e examinou a sala. Será que este era o mesmo
lugar? Estremeceu diante do sussurro dos pensamentos sombrios
à espreita e trancou-os de novo. Olhou para a sala de estar
procurando o local perto da lareira, mas não encontrou nenhuma
mancha. Notou que a sala era decorada com figuras que pareciam
ter sido desenhadas ou feitas por crianças. Imaginou se aquela
mulher guardava com carinho cada uma daquelas peças, como
qualquer pai ou mãe que ama os filhos.
Talvez fosse assim que ela valorizava as coisas que lhe eram
dadas de coração, como as crianças em geral fazem. Mack foi em
direção ao cantarolar baixo e chegou a uma copa-cozinha onde
havia uma mesa com quatro lugares e cadeiras de encosto de vime.
O interior do chalé era mais espaçoso do que ele havia imaginado.
Papai estava trabalhando em alguma coisa, de costas para ele, com
farinha voando enquanto se balançava ao ritmo da música ou
do que quer que estivesse escutando. A canção obviamente
acabou, marcada por duas últimas sacudidas de ombros e
quadris. Virando-se para encará-lo, a negra tirou os fones de
ouvido.
De repente Mack quis fazer mil perguntas ou dizer mil coisas,
algumas terríveis. Tinha a certeza de que seu rosto traía as
emoções que ele lutava para controlar e então enfiou tudo de volta
no coração sofrido. Se ela conhecia seu conflito interno, não
demonstrou nada pela expressão — ainda aberta, cheia de vida e
convidativa.
Ele quis saber:
— Posso perguntar o que você está escutando?
— Um barato da Costa Oeste. É um disco que ainda nem foi
lançado, chamado Viagens do coração, tocado por uma banda
chamada Diatribe. Na verdade — ela piscou para Mack —, esses
garotos ainda nem nasceram.
— É mesmo? — reagiu Mack bastante incrédulo. — Um
barato da Costa Oeste, hein? Não parece muito religioso.
— Ah, acredite: não é. É mais tipo funk e blues eurasiano,
com uma mensagem fantástica. — Ela veio bamboleando na
direção de Mack, como se estivesse dançando, e bateu palmas.
Mack recuou.
— Então Deus ouve funk? — Mack nunca ouvira a palavra
"funk" em qualquer contexto religioso. — Achei que você estaria
ouvindo uma música mais de igreja.
— Ora, veja bem, Mackenzie. Você não precisa ficar me
rotulando. Eu ouço tudo e não somente a música propriamente
dita, mas os corações que estão por trás dela. Não se lembra de
suas aulas na escola dominical? Esses garotos não estão dizendo
nada que eu já não tenha ouvido antes. Simplesmente são cheios
de vinagre e gás. Muita raiva, e, devo dizer, com um bocado de
razão. São apenas alguns dos meus meninos se mostrando e
fazendo beicinho. Gosto especialmente desses garotos. É, vou ficar
de olho neles.
Mack lutou para encontrar algum sentido no que acontecia.
Nada do que estudara na escola dominical da igreja estava
ajudando. Sentia-se subitamente sem palavras e todas as suas
perguntas pareciam tê-lo abandonado. Por isso declarou o óbvio:
— Você deve saber que chamá-la de Papai é meio
complicado para mim.
— Ah, verdade? — Ela olhou-o fingindo surpresa. — Claro
que sei. Sempre sei. — Ela deu um risinho. — Mas diga, por que
você acha que é difícil? Porque é uma palavra familiar demais ou
talvez porque estou me mostrando como mulher, mãe ou...
— Tudo isso é complicado — interrompeu Mack com um
risinho sem jeito.
— Ou talvez por causa dos fracassos do seu pai?
Mack ofegou involuntariamente. Não estava acostumado a ver
seus segredos mais profundos virem à superfície de modo tão
rápido e explícito. A culpa e a raiva cresceram instantaneamente, e
ele quis reagir com uma resposta sarcástica. Sentia que
estava pendurado sobre um abismo sem fundo e teve medo de que,
se deixasse algo daquilo sair, perderia o controle de tudo. Procurou
uma base segura, mas finalmente só conseguiu responder com os
dentes trincados:
— Talvez porque nunca conheci ninguém a quem pudesse
realmente chamar de papai.
Diante disso, ela pousou a tigela que estava aninhada em seu
braço e, deixando dentro a colher de pau, virou-se para Mack com
olhos gentis. Não precisava dizer coisa alguma.
Ele viu imediatamente que ela entendia o que lhe ia na alma e
de algum modo soube que ela gostava mais dele do que de
qualquer pessoa.
— Se você deixar, Mack, serei o pai que você nunca teve.
A oferta era ao mesmo tempo convidativa e repulsiva. Ele
sempre quisera um pai em quem pudesse confiar, mas não sabia
se iria encontrá-lo ali, logo com alguém que não pudera proteger
sua Missy. Um longo silêncio pairou entre eles. Mack não sabia
direito o que dizer e ela parecia não ter pressa.
— Se você não foi capaz de cuidar de Missy, como posso
confiar que cuide de mim?
Pronto, havia feito a pergunta que o atormentara em todos os
dias da Grande Tristeza.
Mack sentiu o rosto se encher de um vermelho de raiva,
enquanto olhava para o que agora considerava uma caracterização
estranha de Deus, e percebeu que fechara os punhos com força.
— Mack, sinto muito. — Lágrimas começaram a descer pelo
rosto dela. — Sei o tamanho do abismo que isso abriu entre nós.
Sei que você ainda não entende, mas gosto especialmente de Missy
e de você também.
Mack adorou o modo como ela disse o nome de Missy, mas
odiou ouvi-lo dito por ela.
A palavra rolava na língua da mulher como o vinho mais doce
e, apesar de toda a fúria que ainda rugia em sua mente, de algum
modo ele acreditou na sinceridade dela. Mack desejava acreditar, e
lentamente parte da raiva começou a diminuir.
— É por isso que você está aqui, Mack — continuou ela. —
Quero curar a ferida que cresceu dentro de você e entre nós.
Para ganhar algum controle, ele voltou os olhos para o chão.
Passou-se um minuto inteiro antes que tivesse energia suficiente
para sussurrar sem levantar a cabeça:
— Acho que eu gostaria disso — admitiu —, mas não vejo
como.
— Querido, não existe resposta fácil para a sua dor. Acredite,
se eu tivesse uma, usaria agora. Não tenho varinha mágica para
fazer com que tudo fique bem. A vida custa um bocado de tempo e
um monte de relacionamentos.
Mack ficou satisfeito porque estavam se afastando de sua
acusação medonha. Ficara apavorado com a intensidade da
própria raiva.
— Acho que seria mais fácil ter esta conversa se você não
estivesse usando um vestido — ele sugeriu, tentando sorrir
debilmente.
— Se fosse mais fácil, eu não estaria assim — ela disse com
um risinho. — Não estou tentando tornar isso mais difícil para
nenhum de nós dois. Mas este é um bom lugar para começar. Acho
que começar tirando do caminho as questões que vêm da cabeça
faz com que as do coração fiquem mais fáceis de ser trabalhadas...
quando você estiver pronto.
Ela pegou de novo a colher de pau, de onde pingava algum
tipo de massa.
— Mackenzie, eu não sou masculino nem feminina, ainda que
os dois gêneros derivem da minha natureza. Se eu escolho
aparecer para você como homem ou mulher, é porque o amo. Para
mim, aparecer como mulher e sugerir que você me chame de Papai
é simplesmente para ajudá-lo a não sucumbir tão facilmente aos
seus condicionamentos religiosos. Ela se inclinou, como se
quisesse compartilhar um segredo.
— Se eu me revelasse a você como uma figura muito grande,
branca e com aparência de avô com uma barba comprida,
simplesmente reforçaria seus estereótipos religiosos. É importante
você saber que o objetivo deste fim de semana não é reforçar esses
estereótipos.
Mack quase riu alto, ironizando, mas, em vez disso,
concentrou-se no que ela acabara de dizer e recuperou a
compostura. Acreditava, pelo menos no coração, que Deus era um
Espírito, nem masculino nem feminino, mas, apesar disso, sentiase
embaraçado ao admitir que todas as suas concepções visuais de
Deus eram muito brancas e muito masculinas.
Ela parou de falar enquanto guardava alguns condimentos
numa prateleira de temperos e depois virou-se para encará-lo de
novo. Olhou para Mack com intensidade.
— Não é verdade que você sempre teve dificuldade para me
ver como um pai? Depois do que passou, não fica nada fácil lidar
com um pai, não é?
Ele sabia que ela estava certa e percebeu a gentileza e a
compaixão de sua atitude. De algum modo, a maneira como ela
havia se aproximado dele diminuíra sua resistência a receber o
amor oferecido. Era estranho, doloroso e talvez até um tanto
maravilhoso.
— Mas então — ele parou, esforçando-se para se manter
racional — por que tanta ênfase em você ser um pai? Quero dizer,
este parece o modo como você mais se revela.
— Bem — respondeu Papai dando-lhe as costas e ocupandose
na cozinha —, há muitos motivos para isso, e alguns são muito
profundos. Por enquanto, deixe-me dizer que, assim que a Criação
se degradou, nós soubemos que a verdadeira paternidade
faria muito mais falta do que a maternidade. Não me entenda mal,
as duas coisas são necessárias, mas é essencial uma ênfase na
paternidade por causa da enormidade das conseqüências da
ausência da função paterna.
Mack se virou, meio perplexo, sentindo que aquilo já estava
indo longe demais.
Enquanto refletia, olhou pela janela para um jardim de
aparência selvagem.
— Você sabia que eu viria, não é? — disse finalmente,
baixinho.
— Claro que sabia. — Ela estava ocupada de novo, de costas
para ele.
— Então eu não estava livre para deixar de vir? Eu não tinha
opção?
Papai se virou de novo para encará-lo, agora com farinha e
massa nas mãos.
— Boa pergunta; até que profundidade você gostaria de ir? —
Ela não esperou resposta, sabendo que Mack não tinha. Em vez
disso, perguntou: — Você acredita que está livre para ir embora?
— Acho que sim. Estou?
— Claro que está! Não gosto de prisioneiros. Você está livre
para sair por essa porta agora mesmo e voltar para a sua casa
vazia. Mas eu sei que você é curioso demais para ir. Será que isso
reduz sua liberdade de partir?
Ela parou apenas brevemente e depois voltou para sua tarefa,
falando com ele por cima do ombro.
— Se você quiser ir só um pouquinho mais fundo,
poderíamos falar sobre a natureza da própria liberdade. Será que
liberdade significa que você tem permissão para fazer o que quer?
Ou poderíamos falar sobre tudo o que limita a sua liberdade. A
herança genética de sua família, seu DNA específico, seu
metabolismo, as questões quânticas que acontecem num nível
subatômico onde só eu sou a observadora sempre presente.
Existem as doenças de sua alma que o inibem e amarram, as
influências sociais externas, os hábitos que criaram elos e
caminhos sinápticos no seu cérebro. E há os anúncios, as
propagandas e os paradigmas. Diante dessa confluência de
inibidores multifacetados — ela suspirou —, o que é de fato a
liberdade?
Mack ficou ali parado, sem saber o que dizer.
— Só eu posso libertá-lo, Mackenzie, mas a liberdade jamais
pode ser forçada.
— Não entendo. Não estou entendendo o que você acaba de
dizer.
Ela se virou e sorriu.
— Eu sei. Não falei para que você entendesse agora. Falei
para mais tarde. No ponto em que estamos, você ainda não
compreende que a liberdade é um processo de crescimento.
Estendendo gentilmente as mãos sujas de farinha, ela
segurou as de Mack e, olhando-o direto nos olhos, continuou:
— Mackenzie, a Verdade irá libertá-lo, e a Verdade tem nome.
Neste momento ele está na carpintaria, coberto de serragem. Tudo
tem a ver com ele. E a liberdade é um processo que acontece
dentro de um relacionamento com ele. Então todas essas coisas
que você sente borbulhando por dentro vão começar a sair.
— Como você pode realmente saber como me sinto? —
perguntou Mack, encarando-a de volta.
Papai não respondeu, apenas olhou para as mãos dos dois. O
olhar de Mack seguiu o dela, e pela primeira vez ele notou as
cicatrizes nos punhos da negra, como as que agora presumia que
Jesus também tinha nos dele. Ela permitiu que ele tocasse com
ternura as cicatrizes, marcas de furos fundos, e finalmente Mack
ergueu os olhos para os dela.
Lágrimas desciam lentamente pelo rosto de Papai, pequenos
caminhos através da farinha que empoava suas faces.
— Jamais pense que o que meu filho optou por fazer não nos
custou caro. O amor sempre deixa uma marca significativa — ela
declarou, baixinho e gentilmente. — Nós estávamos lá, juntos.
Mack ficou surpreso.
— Na cruz? Espere aí, eu pensei que você o tinha
abandonado. Você sabe: "Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonastes?" — Era uma citação das Escrituras
que freqüentemente assombrava Mack na Grande Tristeza.
— Você não entendeu o mistério naquilo. Independentemente
do que ele sentiu no momento, eu nunca o deixei.
— Como pode dizer isso? Você o abandonou, exatamente
como me abandonou!
— Mackenzie, eu nunca o abandonei e nunca deixei você.
— Isso não faz nenhum sentido — reagiu ele rispidamente.
— Sei que não, pelo menos por enquanto. Mas pense nisto:
quando tudo que consegue ver é sua dor, talvez você perca a visão
de mim, não é?
Quando Mack não respondeu, ela retornou ao trabalho na
cozinha, como se quisesse lhe oferecer um pouco de um necessário
espaço. Parecia estar preparando vários pratos ao mesmo tempo,
acrescentando temperos e ingredientes. Cantarolando uma
musiquinha repetitiva, deu os últimos retoques na torta que estava
fazendo e enfiou-a no forno.
— Não se esqueça, a história não terminou no sentimento de
abandono de Jesus. Ele encontrou a saída para se colocar
inteiramente nas minhas mãos. Ah, que momento foi aquele!
Mack se encostou na bancada um tanto perplexo. Suas
emoções e pensamentos estavam todos misturados. Parte dele
queria acreditar em tudo que Papai dizia. Seria ótimo! Mas outra
parte questionava ruidosamente: "Isso não pode ser verdade! "
Papai pegou o cronômetro da cozinha, girou-o de leve e
colocou-o na mesa diante deles.
— Não sou quem você acha, Mackenzie. — As palavras dela
não eram raivosas nem defensivas.
Mack olhou para ela, olhou para o cronômetro e suspirou.
— Estou me sentindo totalmente perdido.
— Então vejamos se podemos encontrá-lo no meio dessa
confusão.
Quase como se tivesse recebido a deixa, um pássaro azul
pousou no parapeito da janela e começou a pular para trás e para
a frente. Papai enfiou a mão numa lata sobre a bancada e, abrindo
a janela, ofereceu ao pássaro uma mistura de grãos que ela devia
guardar exatamente para isso. Sem qualquer hesitação e com
aparente ar de humildade e gratidão, o pássaro foi direto para a
mão dela e começou a comer.
— Considere nosso amiguinho aqui — começou ela. — A
maioria dos pássaros foi criada para voar. Para eles, ficar no solo é
uma limitação de sua capacidade de voar, e não o contrário. — Ela
parou para deixar que Mack pensasse nisso. — Você, por outro
lado, foi criado para ser amado.
Assim, para você, viver como se não fosse amado é uma
limitação, e não o contrário.
Mack assentiu, não porque concordasse completamente, mas
sinalizando que entendia e estava acompanhando. O que ela dizia
era bastante simples.
— Viver sem ser amado é como cortar as asas de um pássaro
e tirar sua capacidade de voar. Não é algo que eu queira para você.
Aí é que estava. No momento ele não se sentia
particularmente amado.
— Mack, a dor tem a capacidade de cortar nossas asas e nos
impedir de voar. — Ela esperou um momento, permitindo que suas
palavras se assentassem. — E, se essa situação persistir por muito
tempo, você quase pode esquecer que foi criado originalmente para
voar.
Mack ficou quieto. Estranhamente, o silêncio não era tão
desconfortável assim.
Olhou o pássaro. O pássaro olhou de volta para Mack. Ele
imaginou se seria possível os pássaros sorrirem. Pelo menos aquele
parecia capaz.
— Não sou como você, Mack.
Não era uma repreensão, e sim a simples declaração de um
fato. Mas para Mack foi como um banho de água gelada.
— Sou Deus. Sou quem sou. E, ao contrário de você, minhas
asas não podem ser cortadas.
— Bom, é maravilhoso para você, mas onde, exatamente, isso
me deixa? — reagiu Mack, parecendo mais irritado do que gostaria.
Papai começou a acariciar o pássaro, aproximou-o do rosto e
disse:
— Exatamente no centro do meu amor!
— Estou achando que esse pássaro provavelmente entende
isso melhor do que eu — foi o máximo que Mack conseguiu dizer.
— Eu sei, querido. Por isso estamos aqui. Por que você acha
que eu disse que não sou como você?
— Bom, realmente não faço idéia. Quer dizer, você é Deus e
eu não sou. — Ele não conseguiu afastar o sarcasmo da voz, mas
ela o ignorou completamente.
— É, mas não exatamente. Pelo menos não do modo como
você está pensando. Mackenzie, eu sou o que alguns chamariam
de "sagrado e totalmente diferente de você". O problema é que
muitas pessoas tentam entender um pouco o que eu sou pensando
no melhor que elas podem ser, projetando isso ao enésimo grau,
multiplicando por toda a bondade que são capazes de perceber —
que freqüentemente não é muita —, e depois chamam o resultado
de Deus. E, embora possa parecer um esforço nobre, a verdade
é que fica lamentavelmente distante do que realmente sou. Sou
muito mais do que isso, sou acima e além de tudo o que você
possa perguntar ou pensar.
— Lamento, mas para mim isso não passa de palavras. E elas
não fazem muito sentido. — Mack deu de ombros.
— Mesmo que você não consiga finalmente me compreender,
sabe de uma coisa? Ainda quero ser conhecido.
— Você está falando de Jesus, não é verdade? Está me
lembrando as aulas de catecismo: "Vamos tentar entender a
Trindade"?
Ela deu um risinho.
— Mais ou menos, mas aqui não é a escola dominical. É uma
aula de vôo. Mackenzie, como você pode imaginar, há algumas
vantagens em ser Deus. Por natureza, sou completamente
ilimitada, sem amarras.
Sempre conheci a plenitude. Minha condição normal de
existência é um estado de satisfação perpétua — disse ela,
bastante satisfeita. — É apenas uma das vantagens de Eu ser Eu.
Isso fez Mack sorrir. A mulher estava se divertindo muito com
ela mesma e não havia um pingo de arrogância para estragar
aquilo.
— Nós criamos vocês para compartilhar isso. Mas então Adão
optou por ficar sozinho, como sabíamos que iria acontecer, e tudo
se estragou.
Mas, em vez de varrer toda a Criação, arregaçamos as
mangas e entramos no meio da bagunça. Foi o que fizemos em
Jesus.
Mack estava parado, esforçando-se ao máximo para
acompanhar o fio dos pensamentos dela.
— Quando nós três penetramos na existência humana sob a
forma do Filho de Deus, nos tornamos totalmente humanos.
Também optamos por abraçar todas as limitações que isso
implicava. Mesmo que tenhamos estado sempre presentes nesse
universo criado, então nos tornamos carne e sangue. Seria como
se este pássaro, cuja natureza é voar, optasse somente por andar e
permanecer no chão. Ele não deixa de ser pássaro, mas isso altera
significativamente sua experiência de vida.
Ela parou para se certificar de que Mack ainda estava
acompanhando seu raciocínio.
Embora houvesse uma dor nítida se formando em seu
cérebro, ele fez um gesto, convidando-a a continuar.
— Ainda que por natureza Jesus seja totalmente Deus, ele é
totalmente humano e vive como tal. Ainda que jamais tenha
perdido sua capacidade inata de voar, ele opta, momento a
momento, por ficar no chão. Por isso seu nome é Emanuel, Deus
conosco, ou Deus com vocês, para ser mais exata.
— Mas... e todos os milagres? As curas? Ressuscitar os
mortos? Isso não prova que Jesus era Deus... você sabe, mais do
que humano?
— Não, isso prova que Jesus é realmente humano.
— O quê?
— Mackenzie, eu posso voar, mas os humanos, não. Jesus é
totalmente humano. Apesar de ele ser também totalmente Deus,
nunca aproveitou sua natureza divina para fazer nada. Apenas
viveu seu relacionamento comigo do modo como eu desejo que
cada ser humano viva. Ele foi simplesmente o primeiro a levar isso
até as últimas instâncias: o primeiro a colocar minha vida dentro
dele, o primeiro a acreditar no meu amor e na minha bondade,
sem considerar aparências ou conseqüências.
— E quando ele curava os cegos?
— Fez isso como um ser humano dependente e limitado que
confia na minha vida e no meu poder de trabalhar com ele e
através dele. Jesus, como ser humano, não tinha poder para curar
ninguém.
Isso foi um choque para as crenças religiosas de Mack.
— Só enquanto ele repousava em seu relacionamento comigo
e em nossa comunhão, nossa comum-união, ele se tornava capaz
de expressar meu coração e minha vontade em qualquer
circunstância determinada. Assim, quando você olha para Jesus e
parece que ele está voando, na verdade ele está... voando. Mas o
que você está realmente vendo sou eu, minha vida nele. É assim
que ele vive e age como um verdadeiro ser humano, como cada
humano está destinado a viver: a partir da minha vida.
E continuou:
— Um pássaro não é definido por estar preso ao chão, mas
por sua capacidade de voar. Lembre-se disso: os seres humanos
não são definidos por suas limitações, e sim pelas intenções que
tenho para eles.
Não pelo que parecem ser, mas por tudo que significa ser
criado à minha imagem.
Mack sentiu necessidade de sentar-se. Percebeu que
precisaria de um certo tempo para compreender todas aquelas
informações.
Papai colocou o pássaro sobre a mesa, perto de Mack, virouse
para abrir o forno e deu uma olhadinha na torta que estava
assando. Satisfeita porque tudo ia bem, puxou uma cadeira para
perto. Mack olhou o pássaro que, espantosamente, parecia
contente em apenas ficar ali com eles. O absurdo daquilo fez Mack
dar um risinho.
— Para começar, é bom que você não consiga entender a
maravilha da minha natureza. Quem quer adorar um Deus que
pode ser totalmente compreendido, hein? Não há muito mistério
nisso.
— Mas que diferença faz o fato de haver três de vocês e que
todos sejam um só Deus? É isso mesmo?
— É, sim. — Ela riu. — Mackenzie, faz toda a diferença do
mundo! — Ela parecia estar gostando daquilo. — Não somos três
deuses e não estamos falando de um deus com três atitudes, como
um homem que é marido, pai e trabalhador. Sou um só Deus e sou
três pessoas, e cada uma das três é total e inteiramente o um.
O "hã" que Mack estivera retendo veio finalmente à superfície
com toda a força.
— Não importa — continuou a mulher. — O importante é o
seguinte: se eu fosse simplesmente Um Deus e Uma Pessoa, você
iria se encontrar nesta Criação sem algo maravilhoso, sem algo que
é essencial. E eu seria absolutamente diferente do que sou.
— E nós estaríamos sem...? — Mack nem sabia como
terminar a pergunta.
— Amor e relacionamento. Todo amor e relacionamento só
são possíveis para vocês porque já existem dentro de Mim, dentro
do próprio Deus. O amor não é a limitação. O amor é o vôo. Eu sou
o amor.
Como que em resposta à declaração dela, o pássaro partiu
voando pela janela. Olhá-lo voando causou um intenso deleite.
Mack virou-se de volta para Papai e olhou-a maravilhado. Ela era
muito linda e espantosa e, apesar de estar se sentindo meio
perdido e de a Grande Tristeza ainda o acompanhar, percebeu
crescendo dentro dele um pouco de segurança por estar perto dela.
— Entenda o seguinte — continuou Papai. — Para que eu
tenha um objeto para amar ou, mais exatamente, um alguém para
amar, é preciso que exista esse relacionamento dentro de mim.
Caso contrário, eu não seria capaz de amar. Você teria um deus
incapaz de amar. Ou, talvez pior, você teria um deus que, quando
escolhesse amar, só poderia fazê-lo como uma limitação de sua
natureza. Esse tipo de deus possívelmente poderia agir sem amor e
seria um desastre. E isso certamente não sou eu.
Papai se levantou, foi até a porta do forno, tirou a torta
recém-assada, colocou-a na bancada e, virando-se como se fosse
se apresentar, disse:
— O Deus que é, o "eu sou quem eu sou", não pode agir fora
do amor!
Mack soube que, por mais difícil de entender que fosse, o que
estava escutando era algo espantoso e incrível. Como se as
palavras dela estivessem se enrolando nele, envolvendo-o e falando
com ele de maneiras que iam além do que ele poderia ouvir. Não
que acreditasse de fato em nada daquilo. Se ao menos fosse
verdade! Sua experiência lhe dizia o contrário.
— Este fim de semana tem a ver com relacionamento e amor.
Bom, eu sei que você tem um monte de coisas para me dizer, mas
neste momento é melhor ir se lavar. Os outros dois estão vindo
para o jantar. — Ela foi andando, mas parou e virou-se.
— Mackenzie, sei que seu coração está cheio de dor, de raiva
e de muita confusão. Nós dois vamos falar um pouco disso
enquanto você estiver aqui. Mas também quero que saiba que
estão acontecendo mais coisas do que você pode imaginar ou
entender. Procure usar ao máximo a confiança que tiver em
mim, mesmo que ela seja pequena, está bem?
Mack baixara a cabeça e olhava para o chão. "Ela sabe",
pensou. Pequena? "Pequena" ou praticamente nada? Confirmando
com a cabeça, olhou para cima e notou novamente as cicatrizes
nos pulsos dela.
— Papai? — disse Mack muito sem jeito.
— O que é, querido?
Mack lutou para encontrar as palavras que expressassem o
que lhe ia no coração.
— Lamento muito que você, que Jesus tivesse de morrer.
Ela rodeou a mesa e deu outro grande abraço em Mack.
— Sei que lamenta e agradeço. Mas você precisa saber que
nós não lamentamos nem um pouco. Valeu a pena. Não é, filho?
Ela se virou para fazer a pergunta a Jesus, que havia
acabado de entrar no chalé.
— Sem dúvida! — Ele fez uma pausa e depois olhou para
Mack. — E eu teria feito aquilo mesmo que fosse somente por você.
Mas não foi! — disse com um sorriso acolhedor.
Mack pediu licença e saiu em direção ao banheiro. Lavou as
mãos e o rosto e tentou recuperar a compostura.

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